Todo mundo entende o significado dessas palavras “achatar a curva” que ouvimos nestes dias a cada cinco minutos? Me desculpem se estou dizendo o óbvio, mas quando se fala de achatar a curva do coronavírus, isso não tem nada a ver com a erradicação da doença, senão tangencialmente. Talvez a doença seja erradicada um dia – ou um ano – desses, e talvez não. Essa questão está sendo ponderada por virologistas, infectologistas, pesquisadores médicos e outros especialistas. Achatar a curva significa somente espaçar, ou escalonar, os casos da doença para não sobrecarregar o sistema médico e hospitalar com tantos casos de uma vez só que os médicos e os enfermeiros e os socorristas morram de exaustão e o sistema inteiro entre em colapso. Melhor, em outras palavras, 520 casos no decorrer de um ano em parcelas de 10 casos por semana (520 casos ÷ pelas 52 semanas do ano) do que, digamos, todos os 520 casos no decorrer de cinco semanas no ritmo de 104 casos por semana.
O lógico é o seguinte. Seja o coronavírus mais ou menos letal que outros vírus já conhecidos, o coronavírus é altamente contagioso. Há estimativas que em pouco tempo – digamos, um ano – até 70 por cento da população mundial possa ser infectada, e é verdade, como garante o Dr. Jair, que, em muitos casos, a doença não causará mais desconforto do que um resfriado comum de inverno. Mas, em outros casos, mesmo em rapagões que não chegam a ser internados, a experiência de uma semana de luta com esse vírus assemelha-se à Batalha das Ardenas no último ano da Segunda Guerra Mundial. Até agora, não vi nada igual em português, e portanto recomendo, para os leitores que entendem inglês e gostam de um bom filme de horror, dois testemunhos de Chris Cuomo, marmanjo de 49 anos, âncora no canal de notícias CNN, e irmão do governador do Estado de Nova York, o primeiro em https://www.youtube.com/watch?v=b74d6NVTJ6s&t=8s, o segundo em https://www.youtube.com/watch?v=P3U1ufVvr3U.
Essa ideia que o nosso querido Sandro Peixoto aventou semana passada (no seu Diário do Fim do Mundo #11, aqui neste jornal on-line), de se expor ao vírus intencionalmente para acabar com a angústia de esperar para o vírus chegar a ele . . . era um facécia, Sandro, não era? Um gracejo? Por incrível que pareça, uma revista favorável aos negócios nos EUA – a The Federalist – sugeriu, aparentemente sem ironia, a estratégia de exposição intencional em massa como o melhor jeito de resgatar a economia. Mas por favor, Sandro, não se enturma com esses malucos. Não é uma boa ideia. Além do mais, não há nenhuma garantia de que a imunidade adquirida assim seja duradoura. Adeptos em inglês: Leiam o artigo na “The Atlantic” em https://www.theatlantic.com/health/archive/2020/03/how-will-coronavirus-end/608719/, especialmente o parágrafo começando “Second: duration of immunity”. Lembrem-se: aqui em Búzios, muitas pessoas são vacinadas contra o gripe não uma vez por todas mas todo santo ano. Será prudente também não sonhar demais na eficácia dessa poção mágica dos Drs. Jair e Trump, a hidroxicloroquina. Sem dúvida, avaliações com base na ciência já apareceram na imprensa brasileira. Não as vi. Para âdeptos em inglês, recomendo o artigo no The New York Times em https://www.nytimes.com/article/coronavirus-hydroxychloroquine-malaria.html. Ou, para quem prefere a versão em formato pdf, entre em contato comigo de uma forma ou outra e encaminho.
Numa das hipóteses mais otimistas para a saída deste atoleiro em que, de repente, nos encontramos, a população mundial desenvolverá o que se chama a imunidade de rebanho, mesmo sem todo mundo sair à procura de carrinhos de supermercado com vestígios das gotas da saliva de pessoas infectadas. A imunidade de rebanho acontece quando uma grande porção de uma comunidade adquire imunidade a uma doença, ou por exposição – exposição não fatal, é óbvio – ou por vacinação, e esta imunidade generalizada serve para prender a maior propagação da doença. Numa outra hipótese otimista, uma vacina contra o vírus será desenvolvida, testada, produzida em massa, e finalmente administrada, mas simplesmente esboçar os passos dá uma ideia do desafio. Apesar do pensamento mágico de pessoas como o Dr. Jair aqui e o Dr. Donald lá no meu país de origem, o coronavírus não vai sumir da noite para o dia como, digamos, um hóspede grosseiro e agressivo em uma das nossas pousadas, nesse passado recente em que as nossas pousadas ainda funcionavam. Um economista americano – Paul Romer, professor na New York University, ganhador do Nobel – vê a salvação num programa de testagem em massa para a presença do vírus – até 20 milhões de pessoas por semana só nos EUA (e repita a cada duas semanas). O programa que Romer propõe foi noticiado em várias mídias aqui no Brasil, O Globo inclusive, a ideia sendo que, se a testagem ficar tão corriqueira e tão barata quanto o cafezinho de manhã, as pessoas infectadas podem ser quarentenadas e as não infectadas prosseguirão as suas atividades normais. (Romer, obviamente, é focado tanto nos efeitos econômicos do vírus quanto na taxa de mortalidade.) Veja o artigo sobre a proposta do Romer no Globo em https://oglobo.globo.com/economia/vencedor-do-nobel-propoe-testagem-em-massa-contra-coronavirus-mais-barato-do-que-destruir-economia-1-24335924
Outras pessoas – inclusive, nos EUA, um grupo no Center for American Progress e um outro no Safra Center for Ethics na Universidade Harvard – vêem a salvação num programa de vigilância eletrônica. As pessoas que valorizam as liberdades civis e a privacidade e temem um estado cada vez mais intrometido sentem antipatia por este plano instintivamente, por causa dos inevitáveis abusos, mas a ideia é que todo mundo baixaria um aplicativo de geolocalização nesse celular de que nunca se desgruda. Assim, todo mundo poderia ser rastreado em tempo real. Fulano cruza caminho com Beltrano. Beltrano é infectado. Fulano entra em quarentena, assim obviamente como Beltrano. Por grotesca que apareça essa proposta, não é muito diferente de sistemas já implantados na Coreia do Sul e em Singapura. Um tal sistema está sendo contemplado para o Brasil? Eu nada ouvi a respeito, mas parece-me bem dentro das possibilidades neste país em que ninguém se desloca de um lado do sofá para o outro sem se certificar de que o celular fique ao alcance.
E mais uma medida que está sendo aventada em todos os países afetados: Não somente achatar a curva mas também, em mais uma dessas expressões que vêm brotando como chuchu na serra nesta situação inédita, levantar a linha, ou seja aumentar a capacidade do sistema hospitalar para lidar com um maior número de casos simultaneamente. Se não, no exemplo acima, 520 casos por semana, pelo menos 20 ou 30 (em vez de 10). Veja o gráfico. É só notar que nenhuma dessas medidas e abordagens garante a eliminação total do vírus. Todas são paliativas – de um grau de eficácia, ou outro.
Desculpem a extensão dessas observações mas, já tendo começado, temos que seguir o raciocínio até o final.
Como todos que acompanham as notícias sabem, o mundo inteiro está, neste momento, enfrentando um dilema ou, como diríamos no meu inglês nativo, estamos “on the horns of a dilemma”, ou seja, nos chifres de um dilema. E prefiro essa segunda expressão porque, enquanto um dilema sempre causa alguma angústia, os chifres de um dilema, especialmente quando bem pontiagudos, doem. Temos duas opções incompatíveis uma com a outra, embora, com certeza, com muitas gradações de cinza entre os dois extremos. Num desses dois extremos, ficamos com a nossa política de confinamento em casa por um tempo indefinido, reduzimos assim, no máximo possível, o número de vidas perdidas, e olhamos, impotentemente, enquanto a economia de cada um dos nossos países, já em frangalhos, deslize para o abismo. No outro extremo, “reabrimos” a economia e arriscamos novos recordes de óbitos. Eu, com certeza, não sei qual o caminho certo. Se a escolha fosse fácil, não estaríamos nos chifres de um dilema. Só quero observar que há uma tendência entre as pessoas bem-pensantes de imaginar que todos que favorecem a reabertura da economia sofrem dessa outra doença, a do capitalismo selvagem, da valorização do crescimento econômico, ou pelo menos a estabilidade econômica, acima de qualquer outro valor, a própria vida inclusive. Não é uma caracterização justa.
Cito dois comentaristas, o primeiro com credenciais impecáveis de coração de manteiga e abraçador de árvores. O nome dele é Peter Singer. Australiano de nascimento, agora é Ira W. DeCamp Professor da Bioética no Departamento de Filosofia na Universidade Princeton nos EUA. Seu interesse especial: os direitos de animais. (Escreveu um livro publicado no Brasil sob o título “Libertação Animal”.) Disse numa entrevista recente no The New York Times que, mesmo nos países ricos, uma política de confinamento em casa, se ela permanecer em vigor por um ano ou 18 meses, terá conseqüências “honoríficas” e sobretudo para as pessoas mais carentes. Acrescenta que, nos países menos ricos, a lógica terá que ser: “Sim, pessoas vão morrer se reabrirmos, mas as conseqüências de não reabrir são tão severas que talvez tenhamos que fazê-lo mesmo assim. Se mantermos o trancamento, mais jovens vão morrer porque não terão o suficiente para comer ou para outras necessidades básicas.”
O outro comentarista, Ruchir Sharma, autor do livro “Os Rumos da Prosperidade: Em Busca dos Próximos Milagres Econômicos”, aponta que os EUA se comprometeram a gastar uma quantia igual a 10 por cento do seu PIB para abrandar os efeitos da crise. Alemanha, a Grã-Bretanha e França vão gastar quantias iguais a 15 por centos dos seus PIBs. Outros países, como o Brasil, não têm esse luxo.
Não temos que ponderar as opções até as nossas cabeças explodirem. As decisões já estão sendo feitas. As economias vão reabrir – gradativamente. As pessoas voltarão a trabalhar, mas de uma forma diferente. Muitas pessoas usarão máscaras. Não se abraçarão como antes. Nos restaurantes, as mesas estarão mais espaçadas. Haverá um quê de ansiedade no ar. Após o expediente, as pessoas vão voltar a casa o mais depressa possível. Nos ônibus, nas vans, olharemos um para o outro com suspeição. E, não obstante, um bocado de pessoas vão morrer. Porque o vírus não terá sido extirpado. Aqui em Búzios, a dor será pior do que em outros lugares. Somos nós um destino turístico. Nosso produto é a descontração. Quem vai se sentir relaxado numa cidade altamente nervosa?
Mais uma vez peço perdão pela extensão destas observações. Mas acho que, neste ponto, podemos dispensar as pessoas mais novas e continuar esta conversa só entre nós, os idosos, e em companhia a pessoas em outras categorias vulneráveis, os diabéticos, os imunodeficientes, os obesos, não que não há sobreposição à beça. Eu sei que, aqui em Búzios, todos os idosos, muitos deles amigos meus, dizem que a idade é só um número. Essa é a posição de todo idoso espiritualizado, iluminado, moderno. Quem não acredita que a idade é só um número é medieval, se não troglodita. Mas, sabe, os idosos são uma categoria definida e reconhecida até pela Constituição brasileira. (Vejam o Artigo 230.) Aqui no Brasil, temos também um Estatuto do Idoso, o que não é o caso no país em que eu nasci e cresci, e esse estatuto nos garante várias proteções e privilégios em função da nossa maior vulnerabilidade – mesmo se a nossa saúde (como a minha e a da minha mulher) esteja boa. Há indicações, por exemplo, que, entre as pessoas que pegam o coronavírus, a taxa de mortalidade é até oito vezes maior entre pessoas acima de 60 anos do que entre pessoas mais novas.
Obviamente, os idosos e as pessoas em outras categorias vulneráveis voltarão a trabalhar se dependam do salário ou de outro tipo de renda, ganha só na rua, para sobreviverem. Mas e nós felizardos que têm aposentadorias ou pé de meia ou filhos que nos sustentam, o que nós vamos fazer se não somos obrigados a sair, mesmo depois do sinal do fim de alarme? Meus próprios prazeres eram sempre bastante simples. Gostava de tomar um expresso no Golden ou no Rabe, na Galeria dos Arcos, ou no Maria Maria. Gostava de engolir duas ou três empanadas na Empanadaria. Mas o que vou fazer no futuro? Vou arriscar minha vida para um expresso num lugar público – além do mais, numa atmosfera de medo e suspeição generalizados? Estou começando a pensar que talvez eu nunca mais saia de casa. Que pena.
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