Ocorreria na manhã da última sexta-feira, 12 de agosto de 2022, a “Cerimônia de Entrega das Terras” às famílias quilombolas de Baía Formosa, expulsas da região na década de 1970 por fazendeiros. O evento, cancelado na véspera, marcaria o registro cartorial de devolução de uma área com cerca de 800 mil metros quadrados para as famílias, conforme cobertura da Prensa. No entanto, cabem algumas reflexões críticas a respeito desse caso.
Nunca é demais lembrar que, durante a primeira metade do século XIX, a região conhecida como “Baía Formosa”, o trecho do litoral que vai da Praia do Peró, em Cabo Frio, até Rio das Ostras, foi um importante ponto de desembarque de africanos capturados para trabalho escravo. Estima-se que, somente durante os anos de 1844 e 1845, cerca de 18 mil pessoas foram desembarcadas na região para trabalho servil na agricultura gerenciada pelo polo administrativo da Fazenda Campos Novos.
No pós-Abolição (1888), a população negra permaneceu habitando na região adotando uma prática lembrada até hoje pelos quilombolas de Baía Formosa chamada “pagando dia para morar”, sistema em que as famílias pagavam um dia de trabalho para os “donos” das antigas fazendas em troca de uma parcela de terra onde pudessem produzir suas roças. Isso nos remete a um processo de ocupação ancestral na região, cuja permanência possibilitou a criação de uma rede de interações sociais, econômicas e culturais entre as famílias descendentes dos libertos, tendo como base uma íntima relação com a terra e seus produtos.
Todo o período de permanência dessa comunidade é profundamente marcado, em menor ou maior grau dependendo da conjuntura, pela violência oriunda de agentes econômicos interessados em concentrar o poder sobre a terra. A expulsão das famílias do Quilombo de Baía Formosa por fazendeiros na década de 1970, é provavelmente o episódio de desterritorialização mais traumático sofrido pela comunidade, cujos impactos em seus modos de vida, relações econômicas e culturais são sentidos até hoje pelo grupo.
É necessário compreender que a expulsão das famílias de Baía Formosa integra uma dinâmica de espoliação espacial e superconcentração de terras para fins de especulação imobiliária, dado o avanço das intervenções urbanas e de infraestrutura em Búzios a partir da “turistificação” da região que, à época, era o Terceiro Distrito de Cabo Frio. A consolidação do que hoje é Búzios, tanto em sua base socioespacial quanto o conjunto de representações simbólicas cristalizadas nas práticas sociais e identitárias, foi um projeto levado a cabo pelos interesses de uma elite econômica que se instalou paulatinamente no local.
Considerando a saturação do espaço urbano da região peninsular do município, o que se observa atualmente é o avanço de uma fronteira elitista de territorialização em direção à região continental, bem representado pelo empreendimento Aretê, cujo processo de licenciamento avançou em grande parte desconsiderando a presença das terras pleiteadas pelo quilombo em sua área de influência direta.
A comunidade de Baía Formosa, uma vez organizada, manifestou-se junto aos órgãos competentes, momento em que o Ministério Público e o Incra interviram no processo, gerando uma série de acordos entre as partes, com contrapartidas em benefício dos quilombolas. Cabe desmistificar a narrativa de “doação” de terras para o quilombo de Baía Formosa. O que há, de fato, é a devolução de uma parcela das terras como forma de contornar o imbróglio jurídico gerado entre licenciamento ambiental do empreendimento Aretê, processo de demarcação e titulação de terras do quilombo e a turbulenta posse da terra pelos descendentes do fazendeiro que ordenou a expulsão das famílias na década de 1970.
As terras em processo de devolução para as famílias são uma fração no conjunto das terras originalmente habitadas pelo grupo. Isso representa o mínimo de reparação histórica diante das consequências do violento processo de exclusão socioespacial levado a cabo contra essas famílias.
A titulação das terras pleiteadas pela comunidade quilombola de Baía Formosa é necessária para garantir a reprodução física, social, econômica e cultura da comunidade. Além disso, cabe integrar, nesses territórios, um rol de políticas públicas voltadas à melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e serviços públicos para a comunidade, a exemplo da Agenda Social Quilombola, instrumento do Programa Brasil Quilombola.
Resta destacar que nos últimos anos tanto o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão responsável pela identificação, demarcação e titulação dos territórios quilombolas, quanto demais programas voltados para o desenvolvimento social dessas comunidades têm sofrido pesados contingenciamentos orçamentários por parte do Governo Federal, inviabilizando a execução de políticas públicas para os quilombos em todo o país. Cabe, principalmente, reverter o sucateamento a que os órgãos promotores dos direitos dos povos e comunidades tradicionais têm sido submetidos a partir do recrudescimento das políticas ultraneoliberais levadas a cabo no Brasil.
Por Patrick Almeida Soares – Mestre em Serviço Social pela PUC-Rio, na linha de pesquisa sobre “questões socioambientais, urbanas e formas de resistência social”