24 dias de internação no Hospital de Búzios, impossibilitada de ser transferida devido a seu grave estado de saúde, a buziana Elizangela acompanhou na UTI a chegada de vários conhecidos e a morte de pessoas queridas
Um cilindro de oxigênio no canto da cama pode assustar muita gente, mas para Elizangela Ramos, representa um troféu. Após 24 dias internada no Hospital Municipal Rodolpho Perissé, 15 dos quais dependendo de um respirador para sobreviver, voltar para casa e reencontrar a família é o maior prêmio que poderia receber. Sem precisar do cilindro que a encara no quarto, esta buziana que ficou entra a vida e a morte, diz que ele veio apenas como garantia. Está bem, e curada.
A história de sucesso de Elizangela, internada dia 9 de junho e liberada no último dia 3, atravessa momentos tensos e extremamente tristes. Suas idas e vindas até ser finalmente atendida e diagnosticada, gritam a necessidade de um Centro de Triagem para Covid-19. Elizangela não conseguiu atendimento nos dois postos de saúde que procurou ao se sentir mal, protelando em mais 4 dias seu diagnóstico e tratamento, o que colaborou para a piora dos sintomas, e aumentou seu tempo de circulação nas ruas e a chance de contaminar mais pessoas. A prefeitura de Búzios recebeu verba de um milhão de reais da Alerj para a construção do Centro de Triagem, mas até agora não prestou conta desse dinheiro.
Sem condições de ser transferida para um hospital de campanha, devido ao seu grave estado de saúde, Elizangela permaneceu em Búzios durante todo o período em que necessitou de internação. Este fato a fez viver momentos extremamente tristes, acompanhando a chegada de conhecidos. Uns eram logo liberados, outros viu piorarem, serem entubados e transferidos para hospitais de referência na doença. Voltaram notícias de mortes. Mas alguns ela mesma viu morrerem em macas a seu lado, conforme nos conta no relato que escreveu à Prensa.
No depoimento a seguir, Elizangela apresenta sua história, e agradece à equipe do Hospital de Búzios, que chamou de excepcional. Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, equipe de limpeza. Todos são destaque na experiência da paciente, que só reclama de não ver a divulgação de dados sobre o número de internações, e estranha que todas as mortes ocorridas em função da Covid-19 na cidade, tenham acontecido somente enquanto estava internada. Preocupada com a real situação de Búzios, que agora flexibiliza em relação à doença, ela lança a questão: “Será que estão omitindo informações para não assustar o turista, será que o turismo vale mais que as nossas vidas?”
O relato
Fiquei uma semana atacada de rinite e tomando antialérgico. Assim começaram meus sintomas. No domingo já estava com a respiração pesada como se eu estivesse iniciado uma crise de sinusite. Na segunda-feira fui na emergência da Rasa. Ao chegar lá, fui muito mal atendida por uma enfermeira que me falou que já eram 12h20, e o médico já estava em horário de almoço. Ela me disse que ele só voltaria às 14h30, e se eu quisesse esperar, que eu esperasse ou voltasse mais tarde. A enfermeira também disse que eu poderia ir ao hospital me consultar, mas respondi que fui ao posto da Rasa justamente por saber que o foco da Covid está no hospital, e que eu fazia parte do grupo de risco. Aí ela me respondeu que não podia fazer nada!
Foi então que um rapaz que trabalha no posto, me perguntou se eu estava cadastrada na Policlínica para atendimento, e me explicou que a demanda estava livre nos postos de saúde, para pacientes da Policlínica. Eu poderia ser atendida em qualquer posto.
Como no dia seguinte, terça-feira, eu tinha que levar a minha filha no posto de saúde da Ferradura para consulta de acompanhamento com a psicóloga, pensei em procurar atendimento lá para aproveitar a viagem. Só que pra minha surpresa, a médica não me atendeu e disse que eu deveria ir à Policlínica. Respondi que fazia parte do grupo de risco por ter hipertensão, diabetes e o agravante de ser obesa, mas de nada adiantou. Saí do posto da Ferradura e passei na Policlínica, mas tinha muita gente e a ambulância havia acabado de sair com um paciente com Covid para o hospital. Me senti mal, tive calafrios e achei melhor ir embora pra casa.
No final do dia eu comecei ter febre de 39 graus e tomei dipirona. Na quarta-feira eu amanheci com febre e à tarde comecei a sentir dores pelo corpo inteiro, ao ponto de ficar completamente sensível ao toque. Na quinta fui para a emergência e o médico que estava de plantão era o meu endocrinologista. Ele me passou exames de sangue e raio X da face o do tórax. Eu já estava tossindo muito. O médico me disse para ir no dia seguinte até a Policlínica fazer o teste de Covid-19.
Na sexta-feira fiz o teste do cotonete na Policlínica. Meu exame de sangue do dia anterior já estava com as taxas compatíveis com a Covid. O médico me receitou o tratamento para a doença. Preenchi a folha do isolamento residencial e do uso da cloroquina. Fiz um eletrocardiograma, e quando ele me entregou essas folhas que preenchi, ele me pediu para procurar o hospital levando aqueles papéis, caso tivesse alguma piora durante o tratamento.
Iniciei o tratamento e o isolamento na sexta-feira, dia 5 de junho, e na segunda-feira, dia 8, estava me sentindo muito fraca, mal conseguia mastigar, muita tosse e muito ofegante. À noite começou a dificuldade para respirar. Fui para o hospital e apresentei as folhas que havia recebido na Policlínica.
Na classificação de risco, quando a enfermeira verificou minha saturação, ela chamou logo o maqueiro. Fui levada direto para a sala de Trauma da Covid-19. Foi então que começou a minha luta pela vida.
O médico que me atendeu ficou louco quando viu a minha saturação, que é o nível de oxigênio que os pulmões mandam pra corrente sanguínea. O normal é estar entre 95/100. Saturação abaixo de 90 é caso pra intubação, e eu cheguei com a minha saturando em 34.
Fui colocada no oxigênio, tentei me manter o mais tranquila possível, me desliguei completamente do mundo aqui fora, o que não foi fácil, pois havia deixado três filhas em casa. A mais velha com 20 anos, a do meio de 14, e a caçula de apenas 6 anos, que é o meu grudinho.
Coloquei na minha cabeça que se acontecesse algo aqui fora, lá de dentro do hospital eu não poderia resolver nada. Aqui fora tinha minha mãe, meu irmão e meu marido para resolver. Tudo que eu poderia fazer naquele momento era lutar pra sair dali bem, para voltar para minha família bem. E foi o que fiz. Eu só pedia pra Deus que me desse força pra eu lutar e vencer essa guerra, pra voltar curada para a minha família.
Os médicos por diversas vezes pensaram em me intubar, mas quando chegavam perto de mim, eu estava consciente e lutando. Meu estado era tão grave que não podiam nem me transferir. O médico e toda a equipe que me recebeu, ficaram apreensivos demais com a minha saturação em 34. Depois de umas duas horas no respirador, o médico que estava no meu pé, em posição como se estivesse orando, deu um pulo e vibrou muito. Parecia que estava assistindo a um gol de seu time. Foi quando ele virou o monitor pra mim e a minha saturação estava marcando 70. O médico disse que ainda não estava bom, mas em vista dos 34 que eu havia chegado, estava ótimo.
Foram duas semanas de muita falta de ar e muitas dores nas costas, só eu e Deus sabemos o que eu senti. Fiz todo o tratamento, cloroquina, azitromicina, zinco, invermectina, mais os antibióticos. Durante toda a internação a minha alimentação era pastosa, pois não podia mastigar que me cansava. Eles soltavam a máscara e eu colocava uma colherada na boca e colocava a máscara novamente, porque não conseguia respirar sem o respirador. E mesmo o alimento pastoso eu tinha que ajeitar com calma para engolir porque me cansava. Fiquei no respirador, passei pela máscara, até chegar no cateter de oxigênio, que era o último estágio do uso de oxigênio, até começar a fazer o desmame, como eles falam. Os médicos vibravam a cada semana que eles voltavam pro plantão e viam a minha melhora. Me disseram que eu estava ensinando muito pra eles, e que através da minha recuperação, eles teriam que rever o conceito pós Covid.
Na última semana eles ficaram ainda mais surpresos por eu estar respirando sem o uso de oxigênio, e saturando entre 75/88. Saturação pra indicação de intubação, e assim permaneço até hoje em casa, graças a Deus. Saí com um cilindro grande de oxigênio para S.O.S, graças a Deus não precisei usar e espero não usar, em nome de Jesus!
Nesses 24 dias de internação, em nenhum momento a prefeitura relatou em seus boletins que havia paciente em tratamento hospitalar. Nesse período eu presenciei seis mortes aqui no hospital, e quando saí me despedi de dois pacientes que ficaram. Um deles era o seu Pedro. Me despedi dele falando que depois de 24 dias eu estava retornando para minha família, que não me aguentava mais de saudades e que eu estava saindo, mas estava torcendo pela recuperação dele, e ele me abençoou. Que ser humano lindo, fiquei muito triste em saber no dia seguinte da minha alta, que ele faleceu!
São 17 leitos no Hospital de Búzios, todos completos. Fiquei 24 dias internada e desses, 15 dias no respirador. Fui a única que ficou tanto tempo porque a maioria entra, os médicos estabilizam e mandam para hospitais de campanha. Eu só não fui por não estar em condições de ser transferida, e me mantive consciente.
Todos que vi perder a vida ou sair intubado para hospitais de campanha, a maioria chegou a notícia que não haviam resistido, como a Eduarda da Vila Verde, 21 anos, uma menina que eu vi chegar, piorar, ser intubada e transferida, e que infelizmente não sobreviveu. Dona Uia, filha de dona Eva do quilombo da Rasa, morreu do meu lado. Vi seis pessoas morrerem no Trauma da Covid-19. Vi o pescador Zezinho, irmão de Ninica, ser intubado e transferido. Ele faleceu no Rio.
Então fica a minha indignação. Seis mortes eu presenciei, mais a do seu Pedro, são sete mortes. Será que antes do dia 09/06 (quando eu me internei) não houve nenhuma morte? E a morte da Vanessa, a morte do sogro da minha prima? Sei que a cidade depende do turismo, mas será que o capital vale mais do que a vida dos cidadãos buzianos? Você anda pelas ruas e vê as pessoas andando sem máscara! Sabe por quê? Simplesmente porque a cidade só registrou “sete” mortes, uma grande mentira!
Desde que começou o confinamento, eu só saia de casa as terças-feiras para levar minha filha na consulta com a psicóloga. Saíamos de máscara e álcool gel. A minha filha me chamava de viciada em álcool! Mercado era meu marido que fazia, mesmo assim peguei a doença, ninguém mais pegou na minha casa e somos seis.
Agradeço primeiramente a Deus por ter me dado forças pra lutar, e a toda a equipe da Covid-19 do HMRP. Desde a equipe médica, que foi excepcional, os enfermeiros, os técnicos de enfermagem e a equipe de limpeza, todos maravilhosos!
EU SOBREVIVI AO COVID 19!