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Por professor Paulo Roberto
Eu creio cada vez mais firmemente, que vivemos uma época digamos “quase dourada”, naquilo que diz respeito às possibilidades de pesquisa para quem se aventura por este ofício (sim, eu considero um Ofício) chamado “História”. Nunca tivemos acesso a tanto material, desde que instituições de todo o mundo resolveram digitalizar e disponibilizar seus acervos. A capacidade de armazenamento e processamento destes dados, assim como as técnicas para extrair conteúdo desta montanha de informações progride também em ritmo acelerado.
Antigamente, aprendi que aquele interessado em alguma pesquisa, seja lá do que for em História, tinha de lidar com o dilema da escassez. Ou seja, o pesquisador teria de se deparar com fontes escassas, dispersas e de difícil acesso. Se você quisesse pesquisar os registros paroquiais do Rio de Janeiro teria de ir até ao arquivo da Cúria Metropolitana e consultar a documentação in loco. Hoje, a coisa é bem diferente.
Estou lidando com esta situação, neste momento. Tenho consultado a documentação da Casa de Detenção da Corte do Rio Janeiro, que antes só poderia ser consultada ao vivo. Esta mesma coleção foi digitalizada e contém dados muito interessantes sobre o cotidiano da Polícia no século XIX e XX. Já tive a oportunidade de escrever um pouco sobre isso nesta mesma coluna. E hoje aproveito para escrever um pouco mais sobre o que estou descobrindo e aprendendo.
Sou da opinião que esta prática, a de tomar contato direto com o documento histórico deveria ser estimulada o mais cedo possível entre os alunos. Não creio que se ganhe muito postergando este encontro a uma eventual graduação universitária e muito menos a uma pós graduação. Quanto mais cedo melhor. Documentos permitem que sejam feitas indagações que considero muito importantes para trabalhar coisas como elaboração de hipóteses, análises de causalidades, confrontação de evidências, entre outros. Ou seja, tudo aquilo que faz parte do trabalho de um cientista. Seja um Químico, um Sociólogo ou um Médico, habilidades como as citadas acima fazem parte do trabalho destes e de outros profissionais.
Pois bem, os documentos da Casa de Detenção da Corte permitem ter acesso à uma grande quantidade de informações sobre a classe trabalhadora carioca. Cheguei a mencionar em outra oportunidade, que detalhes como a indumentária dos presos eram registrados. Nestes registros, constatei que este “detalhe”, a roupa do trabalhador, nos dá uma ideia do cotidiano desta personagem.
Não havia preso que desse entrada naquela cadeia, que não estivesse portando pelo menos um chapéu de palha. Este era um acessório cujas funções transcendiam a estética. Usar chapéu era a marca de um código de honra tácito, mas facilmente compreendido por todos os que estivessem nas ruas. O chapéu era sinal de respeito mútuo entre os homens, independemente do status do interlocutor. Um escravo –estamos falando de registros de prisão de 1883-1884- “sabia qual era o seu lugar” naquela sociedade, mas mesmo assim, não dispensava o uso do chapéu.
Na verdade, muitos dos tumultos que acabavam em prisão eram iniciados quando alguém cometia a “audácia” de retirar o chapéu de seu oponente. Em muitos casos, isso era estava no mesmo nível de uma agressão física, pois o interlocutor, ao “tocar” no chapéu de seu oponente, tocara também em sua “honra”, que por isso mesmo, exigia um desagravo. E então, os dois iam às vias de fato, a Polícia aparecia e o caso terminava na frente de um Delegado. Não é nenhuma coincidência, portanto, que a representação do “malandro”, bem como a do “trabalhador” portavam este mesmo símbolo comum, o chapéu.
Além deste acessório, o terno, o paletó e o colete, todos escuros ou pretos, constituíam quase a indumentária padrão deste trabalhador, ou pelo menos assim era esta a sua apresentação no espaço público. E aí, com base nestes dados, apresento a seguinte hipótese que merece ser testada. Historiadores como Pierre Chaunu, entre outros da escola Francesa ensinaram-me o valor da história serial, ou seja, a construção de séries destinadas a investigar empiricamente dado fenômeno social.
A indumentária padrão daqueles trabalhadores presos na Casa de Detenção, não me saiu da cabeça. Foi então que, meramente por acaso, me caiu nas mãos a imagem de uma das entidades mais respeitadas da Umbanda e do Candomblé, a imagem do Zé Pelintra. O terno branco, acompanhado de um colete da mesma cor e de um chapéu, igualmente branco era uma representação diametralmente oposta àquela saída destes documentos que consulto. Em que medida as representações dos cultos afro seriam construções coletivas que têm como base, as experiências de uma classe trabalhadora, marcadamente negra?
Se aqueles documentos da Casa de Detenção apresentam este trabalhador com uma indumentária, cuja combinação era capaz de identificá-lo no espaço público como “trabalhador/vadio”, a representação religiosa do “Zé Pelintra” apresenta-se como um contraponto à esta imagem; confrontados, os dois bem poderiam ser considerados imagens de uma fotografia e de seu negativo.
Praticamente todos os presos que identifiquei nos registros da Casa de Detenção da Corte no final do século XIX, declararam ter alguma ocupação ao serem presos. No entanto, a razão alegada pela Polícia da Corte para a prisão destes era em grande parte, “vadiagem”. Não seria pouco razoável supor que a representação religiosa cultuada nos terreiros fosse assim uma marca desta experiência da classe trabalhadora carioca, naquela época.
Seja como for, são hipóteses que aguardam mais evidências para que sejam validadas. Enquanto isso, tanto o “trabalhador” nos registros da Casa de Detenção da Corte quanto a sua contraparte tão famosa nos terreiros, possuem em comum o mesmo acessório, o indefectível chapéu.
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