No século XIX, já havia a prática de ir à praia no Rio de Janeiro. O passeio, como se sabe, era inclusive uma recomendação médica para muitas enfermidades. O banhista portanto não é novidade na paisagem social do Rio de Janeiro. A diferença está no uso que este faz deste espaço, a praia. Enquanto hoje, este banhista trafega da areia para o mar, e vice versa, no século XIX, ‘ir à praia” significava banhar-se nas águas da Baía de Guanabara.
Se um destes habitantes do século XIX tomasse uma máquina do tempo como meio de transporte e caísse em qualquer praia do Rio de Janeiro, ele ficaria absolutamente embasbacado em ver que os banhistas tomavam “banhos de areia”, ao invés de ficarem apenas na água?
Um antropólogo norte-americano, Horace Miner escreveu certa vez, um artigo que se tornou um clássico nas Ciências Sociais. Não havia um curso de Sociologia que “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema” não fosse uma leitura obrigatória. Lembro-em que uma das coisas que mais gostei do pequeno artigo de Miner era a sua curta e interessante definição da Antropologia como uma prática. Ele escreveu que a Antropologia resumia-se a ‘tornar familiar aquilo que nos era estranho, e estranho aquilo que nos é familiar”. o que Horace Miner queria dizer é que este “estranhamento” deliberado é que constituía a principal ferramenta analítica da Antropologia, ou seja, a observação em um contexto social estranho ao cientista. Para ele, o exercício deste estranhamento permitia que o método comparativo pudesse ser aplicado, no sentido de evidenciar características e padrões de comportamento que outra pessoa poderia passar despercebidos.
Uso esta expressão como uma forma de chamar a atenção para as diferenças de atitudes de duas personagens da paisagem urbana do Rio de Janeiro, separadas por mais de um século. O banhista do século XIX realmente iria achar muito estranho ‘aquele proceder” dos banhistas cariocas em uma tarde quente de verão.
Mas o que este estranhamento revelaria?
A prática de ir à praia, da maneira como hoje fazemos é uma invenção do século XX. Mais precisamente ela foi difundida principalmente quando a elite carioca estabeleceu-se na região que hoje conhecemos como a “Zona Sul” do Rio de Janeiro.
Este processo iniciou-se no final do século XIX, quando mudanças econômicas e sociais permitiram que as fronteiras de ocupação da cidade se expandissem para além do Centro da cidade. Já tive a oportunidade de falar um pouco sobre isso em outra coluna aqui do Prensa de Babel.
O desenvolvimento dos transportes, principalmente trens e bondes permitiu que áreas antes distantes fossem integradas à cidade. Foi o que aconteceu com distante Copacabana, um arela de pescadores, que foi ocupada por casas de famílias ricas ansiosas para conseguirem fugir da “agitação” do Centro da cidade.
Copacabana tornou-se o modelo de urbanização e de estilo de vida para esta classe média carioca, fazendo com todos os demais bairros daquilo que hoje consideramos como a Zona Sul da cidade emulassem este padrão de uso do solo. Foi neste processo de construção de “Copacabana” como a vitrine de um novo estilo de vida do carioca que o hábito de ir à praia, tal como hoje conhecemos se institucionalizou.
Foi neste contexto que a ideia de “tomar banho de areia” passa a fazer sentido. Neste período, a ideia de “bronzear a pele” deixando-a “morena”, deixou de ser apenas um modismo entre os ricos de Copacabana. Ele passou também a simbolizar uma nova maneira das pessoas se relacionarem com os conceitos de “Cor” e “Raça”.
Se você que é branco bronzear-se ao sol, isso o tornará “menos branco”? Ao mesmo tempo, se um “mestiço” ou “mulato” fizer o mesmo, ela continuará mestiço? No século XIX, em uma época em que o Rio de Janeiro chegou a ter 40% de sua população como escrava, a distinção da cor da pele, era muito nítida. O “branqueamento” era um horizonte cultural da elite brasileira.
No final do século XIX, e com o fim da escravidão havia uma grande discussão sobre o peso da escravidão, como grande responsável pelo atraso brasileiro. A escravidão aqui não era apenas a instituição, mas o legado de que boa parte de nossa história foi proveniente da assimilação do africano ao nosso contexto social.
Intelectuais da época como Afrânio Peixoto, acreditavam que o branqueamento do brasileiro era uma questão de tempo, e de ciência. Para ele, a imigração européia iria mudar o quadro racial brasileiro. Quanto mais brancos entrassem no Brasil, maior a possibilidade de que as futuras gerações passassem a ter uma pele mais clara, até segundo ele, o negro desaparecer do Brasil, lá pelos idos do começo do século XXI. Em 1908, o médico baiano chegou a afirmar que em um século, ou seja, em 2008, não haveria mais negros no Brasil.
De onde Afrânio Peixoto estava tirando estes dados? Era o que ele percebia com países como a Argentina, que ao longo de todo o século XIX recebeu um grande número de imigrantes europeus que fez com a população negra de uma cidade como Buenos Aires literalmente desaparecesse.
Muitos brasileiros desconhecem, mas Buenos Aires já foi uma cidade com um grande número de negros, exatamente por causa do comércio de escravos no século XVIII, e início do XIX. No entanto, essa população desapareceu, na medida em que mais imigrantes europeus desembarcavam no país.
Era isso que os nossos intelectuais no início do século XX, esperam que ocorresse também no Brasil.
Este foi o contexto onde as ideias de ‘raça” e “cor” passaram a influenciar hábitos da família brasileira como por exemplo, o de ir à praia e mais especificamente, o de se bronzear ao sol.
De fato, é preciso seguir o ensinamento de Horace Miner, de observar coisas que nos são familiares a partir desta perspectiva de estranhamento. Na próxima vez que você for à uma praia do Rio de Janeiro, observe atentamente este ritual absolutamente corriqueiro, o de se bronzear sob um sol abrasador. Ele encerra uma mensagem muito importante sobre a maneira como nós, cariocas e brasileiros pensamos o lugar da cor e da raça em nossa cultura.
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