Charles Dickens na minha opinião, um dos maiores romancistas ingleses do século XIX, escreveu “Um Conto de Duas Cidades”. Como Balzac, Dickens foi o escritor de muitos livros, mas de uma personagem só, essa personagem era a cidade de Londres. A capital do império britânico era a um só tempo, a sede do maior império da história humana, e uma metrópole cuja pobreza se comparava à Índia. A Londres descrita por Dickens nesse e em outros romances é uma metáfora sobre as cidades e de outros contrastes.
Há algum tempo, escrevi que cedo ou tarde, a crise brasileira que se arrasta já há alguns anos, era “federal”, mas espalhou-se pelo resto da federação. Os Estados, e depois os municípios iriam em maior ou menor grau, pegar a rebarba da crise e do “ajuste” fiscal iniciado em 2015.
Na Região dos Lagos de uma maneira geral, não foi diferente. De acordo com uma versão bem senso comum, o grande responsável por tal crise foi um revés na economia do petróleo, que provocou uma queda brutal nos preços do óleo negro. Esse é o entendimento geral das causas desta crise. Mas as coisas podem ser mais complicadas do que este enredo. Deixem-me contar uma história de outra cidade.
Aberdeen, na Escócia, tem hoje uns 400 mil habitantes. No início dos anos 60, o governo britânico começou a explorar petróleo naquela região. Toda a tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas no Mar do Norte foi desenvolvida para tirar a Inglaterra da dependência do Oriente Médio. Como não poderia deixar de ser, Aberdeen foi invadida por uma multidão de americanos das companhias de petróleo, vigaristas, homens de negócio, trabalhadores, todos foram para Aberdeen. O resultado também era de se esperar: especulação imobiliária desenfreada, consumismo, desigualdade econômica e claro, violência e drogas (heroína, de preferência) fizeram parte do cortejo.
Passados 50 anos, Aberdeen parece viver a ressaca dos tempos de prosperidade. Ainda existe petróleo no fundo do Mar do Norte–alguns especialistas dizem que os campos poderão ser explorados por 20,30 anos, no máximo. Os Shoppings estão ainda funcionando, um inclusive foi inaugurado recentemente, mas já não é mais como antigamente, dizem os moradores da cidade. Os motoristas de táxi ainda rodam pilotando Mercedes Benz, mas os fregueses estão cada vez mais ariscos.
Aberdeen sabe que terá de se reinventar. Recentemente, um plebiscito decidiu se a Escócia seria ou não um país independente. Sean Connery, maior relações públicas do país, pessoalmente se envolveu no movimento pela independência. O medo do futuro, entenda-se o temor do fim dos ganhos que a Escócia recebe com os royalties da Inglaterra, fez com que o sonho de independência ficasse para depois. Os escoceses sabem que caíram em uma armadilha. A dependência das rendas do petróleo transformou a benção em dor de cabeça.
O que Aberdeen vai fazer? Essa resposta é crucial para o futuro da cidade. Bem, eles têm lá as suas vantagens. Desde o século XVIII, a Escócia conseguiu angariar uma reputação de ter um excelente sistema de educação, em certa medida melhor até do que o da Inglaterra. Não devemos esquecer que Adam Smith, Charles Darwin, entre outros, foram formados na Escócia. Se houve alguma coisa semelhante ao Iluminismo na Inglaterra, ele se concentrou lá na Escócia.
É com isso que cidades como Aberdeen estão contando. Elas pretendem se transformar em centros de produção científica e intelectual, atraindo estudantes talentosos de todo o mundo. Os escoceses parecem ter aprendido a lição. Na economia do século XXI, o “petróleo” chama-se informação, é com ela que serão produzidos todos os seus derivados: conhecimento, uso sustentável dos recursos naturais, tudo enfim.
Os ingleses também depositam esperanças no “experimento escocês”. Se tudo o que eles planejam der certo, em algumas décadas o Reino Unido se transformaria em uma nova Finlândia.
Aberdeen, Escócia. Os tempos de vacas gordas do petróleo estão ficando para trás. Investir em Educação e Tecnologia foi a escolha deles. Dará certo?
Em “Um Conto de Duas Cidades”, Dickens descreve um dos seus personagens olhando o movimento incessante dos trabalhadores nas docas de Londres. Dickens mostra que uma cidade é um enxame de pessoas cujas escolhas individuais, quando reunidas, dão forma e volume à paisagem. “No fundo, tudo isto, para o bem ou para o mal, é fruto de nossas escolhas”, escrevia Dickens.
Outras cidades quando confrontadas com a mesma realidade, deram também uma resposta que se tivermos um pouco de bom senso, podem nos ajudar a encarar o futuro com outros olhos
A cidade de Lagos, capital da Nigéria é hoje a metrópole mais populosa da África. A própria Nigéria só pode ser entendida no contexto africano com superlativos. A nação mais populosa do continente, o maior produtor de petróleo de lá, a maior concentração de muçulmanos, entre outras características.
Desde a década de 1960, a exploração de petróleo tem sido a atividade econômica mais rentável daquele país. A Nigéria é, na verdade, um país cuja formação, enquanto Estado-Nação foi o resultado da fusão de muitas etnias e antigos reinos, que nos séculos XIX e XX foram subjugados por uma autoridade central. Esse processo foi incompleto, e ele está na raiz de muitos problemas enfrentados por aquele país nos dias de hoje.
A exploração do petróleo na Nigéria, desde os anos 60, é realizada pelas grandes multinacionais do petróleo, o cartel que o jornalista e historiador inglês Anthonny Sampson denominou apropriadamente de as “Sete Irmãs”.
Ao contrário do Alaska, Brasil ou do Mar do Norte, o petróleo nigeriano é explorado no interior, nas bacias de rios habitadas por comunidades ribeirinhas que estão lá há séculos e séculos. Um dos primeiros e mais prejudiciais efeitos dessa exploração do petróleo foi o deslocamento de muitas destas comunidades, por conta dos danos ao meio ambiente.
A Nigéria é campeã em acidentes ambientais provocados pela exploração de petróleo. Milhares destes habitantes do interior abandonaram as suas atividades tradicionais e migraram para a capital Lagos. Ao mesmo tempo, muitas destas regiões onde o petróleo é explorado, a população do interior reclama do governo central uma maior participação nos lucros da extração do petróleo.
A Nigéria é um caso extremo de como a riqueza gerada pelo petróleo gerou mais desigualdade e pobreza do que qualquer outro país. Uma oligarquia composta por famílias tradicionais e funcionários governamentais controla a atividade petrolífera à custa de muita corrupção. Ao mesmo tempo em que o país tornou-se um dos maiores produtores de petróleo do mundo, seu povo, na grande maioria, vive na mais extrema miséria. Lagos, não por coincidência, abriga hoje uma das maiores favelas do mundo, com 2 milhões de pessoas.
A mistura de corrupção extrema, má administração e conflitos étnicos antigos fez surgir o radicalismo religioso nas áreas habitadas por maioria muçulmana. A maior expressão disso é o crescimento do Boko Haram. Comparado às outras organizações terroristas, como a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, o Boko Haram, em muitos aspectos, chega a ser muito pior do que os seus congêneres do Oriente Médio.
Boko Haram é o nome genérico para um movimento denominado “O grupo de pessoas Sunitas que lutam e oram”. Ele cresceu nas regiões habitadas tradicionalmente pela etnia Haussa, cuja conversão ao Islã é anterior à Idade Moderna. Quando a Nigéria foi a base para muitos portos de envio de escravos para a América, como as cidades de Benim e o estreito de Biafra, muitos haussás foram mandados para o Novo Mundo.
Boko Haram, criado na esteira da corrupção e da desigualdade, o grupo armado nigeriano diz que o dinheiro do petróleo na Nigeria enriqueceu uma oligarquia cristã e corrupta.
Um número considerável veio para o Brasil, principalmente para o Recôncavo Baiano. Os haussás foram os protagonistas da maior revolta escrava acontecida em solo brasileiro, a Revolta dos Malês, em Salvador em 1835. O historiador João José Reis defende a tese de que mais do que uma revolta escrava, o que aconteceu em Salvador foi uma “Jihad”, uma guerra santa liderada por um comando muçulmano.
Controvérsias à parte, dei essa volta para mostrar que o que está por trás do surgimento de um grupo como o Boko Haram é o mesmo grupo étnico que 200 anos atrás, liderou uma revolta na capital da Bahia.
No século XXI, o surgimento do Boko Haram e de todas as atrocidades que ele tem praticado no interior da Nigéria, está ligado a uma coisa, ao controle das áreas produtoras de petróleo. A principal justificativa do Boko Haram é que a riqueza do petróleo fica nas mãos de uma minoria corrupta e cristã. Enquanto a população no interior, não tem acesso muitas vezes sequer à água potável e luz elétrica, os beneficiários da indústria petróleo desfrutam na capital, de tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. É esse tipo de discurso que consegue persuadir muitos jovens a entrar para as fileiras do Boko Haram.
As atrocidades que nos últimos tempos ganharam as manchetes de todo o mundo, não são mais do que uma pequena amostra do que realmente está acontecendo naquele canto da África. O puro e simples fanatismo religioso, por si só, não explica o surgimento de uma organização como essa. Eu não teria o menor temor em afirmar que o caso da Nigéria é um exemplo bastante eloquente do que a riqueza, aliada à desigualdade e a corrupção, podem fazer a um país.
Ou seja, a receita para o desastre na África pode bem servir para que aqui no Brasil, pensemos a respeito. Peguemos um país grande, populoso e culturalmente diverso. Adicione a isso uma grande fonte de riqueza, como o petróleo. Acrescente a isso também, um governo extremamente corrupto, notório em desviar dinheiro público. Mais algumas pitadas de extrema concentração de renda, com muitos sem praticamente nada e pouquíssimos, muito ricos. Acrescente violência a gosto. Coloque tudo isso no forno, por uns 30, 40 anos. Espere o resultado.
Vamos para o caso do Alaska. Na década de 60, as grandes companhias de petróleo, mais conhecidas como “As Sete Irmãs” (Esso, Shell, Texaco, Chevron, etc) descobriram imensas reservas de petróleo no Alaska, aquele pedaço de terra que os Estados Unidos compraram do Império Russo no século XIX. O impacto econômico e ambiental desta descoberta foi enorme, maior até do que a exploração de petróleo na Bacia de Campos.
No Alaska, mas de 30% de todos os empregos do Estado estão ligados à economia do petróleo, mas todos os cidadãos recebem uma participação nos lucros desta indústria. Uma ideia para as cidades brasileiras?
Por séculos, o Alaska era um território quase intacto, com uma vida selvagem e uma população que pouco tinham mudado. A chegada das companhias de petróleo trouxe o pacote habitual de benefícios e prejuízos: dinheiro, especulação imobiliária, danos enormes ao meio ambiente, desestruturação do modo de vida de povos tradicionais.
Na década de 1970, um candidato ao governo do Alaska veio com a seguinte ideia em sua campanha: os royalties que as companhias de petróleo deveriam repassar ao Estado do Alaska seriam divididos entre todos os habitantes do Estado, por meio da criação de um fundo soberano.
A coisa funcionava mais ou menos assim: ao invés do governo federal criar uma legislação condicionando a remessa de royalties para que o Estado possa utilizar os recursos, o dinheiro dos royalties ia diretamente para as mãos dos contribuintes. Isso significa que o governo do Alaska considerou mais produtivo distribuir o dinheiro do petróleo entre os cidadãos, do que ver estes recursos se perder na burocracia, ou nos desmandos de políticos e burocratas desonestos.
Ainda que o preço do petróleo tenha baixado a níveis sem precedentes, os cidadãos do Alaska continuam recebendo, todo o final de ano, um cheque de alguns milhares de dólares. O exemplo do Alaska mostra que talvez não tivesse sido má ideia que algo semelhante fosse adotado aqui no Brasil.
Se por uma hipótese, os governos federal, estadual e municipal, dividissem o montante recebido de royalties entre todos os habitantes dos Estados, muito provavelmente teríamos menos problemas hoje. Não duvido de que o cidadão comum teria muito mais sabedoria em aplicar estes recursos do que nossos governantes. Evidentemente, os argumentos de praxe não deixariam de ser utilizados: mais uma “Bolsa Petróleo”, o povo gastaria esse dinheiro com supérfluos, etc, etc, etc. Bem, de certa maneira hoje podemos constatar que quem fez este mal uso dos recursos dos royalties foram os governos, e não os cidadãos.
A Noruega também adotou modelo semelhante e até o momento em que escrevo este texto, não tenho notícia de que na Noruega eles tenham de cortar algum serviço essencial. Ao contrário, última pesquisa realizada no ano passado, colocou a Noruega como uma das cinco nações com melhor qualidade de vida do mundo.
Estes exemplos mostram que se corrermos o mundo e compararmos como as sociedades fizeram uso da riqueza produzida pelo petróleo, podemos constatar, sem muita dificuldade, que a qualidade das instituições políticas e econômicas e não o petróleo, foram responsáveis por gerar grande desenvolvimento social para alguns países e enorme desigualdade e corrupção endêmica em outras.
Como uma maldição pelos danos que a indústria do petróleo causou na Natureza, os deuses parecem se vingar de todos aqueles que não souberam utilizar com sabedoria o presente que a Terra deu aos homens.
*Paulo Roberto Araújo é professor de História e suburbano convicto