Como é que o bilionário Pato Donald chegou a ser o queridinho e o potencial salvador das classes norte-americanas mais lesadas pela globalização e pelo arrocho geral?
Olhem, meus amigos, nos EUA, meu atribulado e extremamente perplexo país de origem, toda pessoa sensata está tentando processar, intelectualmente, este tão bizarro fenômeno que é a presidência Trump. Todo pessoa com um grão de inteligência está tentando tirar um pouco de sentido da nossa guinada tão radical, e tão incauta, de uma grande rodovia – com boa iluminação, boa sinalização, encostamento amplo, e áreas de repouso a cada 10 quilômetros – para uma estrada de chão cheia de buracos, com animais de todo tipo invadindo a pista a toda hora, e com iluminação zero. As palavras escritas sobre o fenômeno Trump, se colocadas ponta a ponta, em fonte de 8 pontos, já alcançariam a lua, se não o planeta Marte. As observações seguintes não constituirão, portanto, nenhuma última palavra. Daqui a cem anos, ainda não haverá uma última palavra. Mas, para dar resposta à pergunta com a qual comecei, um fio da história passa indefectivelmente pelo relacionamento estressado entre Donald e os outros membros do clube de bilionários norte-americanos – vamos dizer, entre Donald e os membros do clube que pagam suas devidas cotas.
Primeiro, da mesma forma como toda a Gália, na famosa frase de Júlio César, estava dividida em três partes, a cidade de Nova Iorque, como muitos de vocês sabem, ou graças a sua leitura ou ao cinema ou por terem passado por alguns túneis e pontes lá, é dividida em cinco partes. Essas cinco partes se chamam boroughs. Da mesma raiz que nos dá a palavra “bairro” em português? Sei lá. Os dicionários ensinam que borough desce de burh em inglês antigo e burg em holandês e alemão – um assentamento fortificado. Os dicionários ensinam que bairro desce do árabe clássico barrī – “exterior, arrabalde, próprio dos arredores de uma cidade”. Seja com for, um borough nova-iorquino é muito maior do que um bairro, e cada borough nova-iorquino contém um monte de bairros.
Se fosse um teste escolar, vocês poderiam nomear os cinco boroughs? Mas isto não é um teste. São Manhattan, Brooklyn, Queens, o Bronx, e Staten Island. Deem uma olhada no plano da cidade ao lado. Manhattan, como muitos de vocês sabem, é, para muitas pessoas, e não somente turistas, facilmente confundido com a cidade em sua totalidade. É em Manhattan que se encontra a maioria das instituições culturais como o Museu de Arte Metropolitano, o Museu de Arte Moderna, o Whitney, o Guggenheim, Carnegie Hall, o Lincoln Center, e também áreas turísticas como Times Square, a Quinta Avenida, e Central Park. Assim como a Zona Sul é a face pública do Rio de Janeiro, Manhattan é a face pública de Nova York, e é lá que moram quase todas as pessoas mais ricas e mais poderosas da cidade, porque é Manhattan que oferece os serviços de grande luxo que essas pessoas procuram. Mas Manhattan é pequeno. 59.1 km2.
Staten Island – mais uma ilha – fica ao sul de Manhattan. Sob o risco de caricaturizar, Staten Island é tradicionalmente o borough dos bombeiros e policiais. A renda média familiar pode ser bastante alta, sobre tudo pelo padrão brasileiro, se os dois membros de um casal trabalham, mas a cultura é resolutamente classe média baixa. Dos cinco boroughs, Staten Island é o único que votou majoritariamente (57%) em Trump.
O Bronx, o único dos cinco boroughs localizado no continente, tem alguns bairros abastados, digamos, classe média alta, ao longo do Rio Hudson, mas são enclaves. Por enquanto, o Bronx (sim, o único borough com artigo obrigatório) fica o borough mais desprezado, mais desprestigiado. A população é predominantemente hispana e negra. Votou (88%) em Hillary.
Não se preocupem. Aos poucos, estamos chegando ao Pato Donald.
Brooklyn agora é quase tão chique quanto Manhattan. Os artistas que não agüentavam mais os alugueis e os preços de venda cada vez mais altos em Manhattan começaram a migrar para Brooklyn algumas décadas atrás, e, como é sempre o caso, os profissionais antenados seguiram. Queens é chique de outro jeito. Por causa da sua mistura de chineses, indianos, coreanos, filipinos, russos e muitas outras nacionalidades recém-chegadas, todas elas lado ao lado com os descendentes dos irlandeses, italianos e negros de migrações anteriores, Queens assemelha-se a uma Nações Unidas. Para quem mora em Manhattan e acha o restaurante chinês ou indiano na esquina insosso e inautêntico, nada melhor do que pegar o metrô e ir para Queens. Programa de índio, não. É como pegar um tapete mágico.
Mas não era sempre assim em Brooklyn e em Queens. Esses dois boroughs vêem evoluindo num ritmo muito mais rápido do que Staten Island e o Bronx. Na minha juventude – e na juventude de Trump, nas décadas de 40 e 50 – Brooklyn era em grande medida o borough da classe operária – motoristas de ônibus, pessoas que trabalhavam no metrô. Queens era o borough da grande classe média e, sobre tudo, da ala branca dessa classe. Queens carecia das ambições econômicas e culturais de Manhattan, mas Queens, nessas décadas de 40 e 50, tinha direito de menosprezar os seus vizinhos ao oeste e sul em Brooklyn, e Queens – de forma discreta, é claro – exercitou esse direito.
Acho que tenho de divulgar agora que eu morei em Nova York, especificamente em Manhattan, por muitas décadas como adulto, mas não fui criado lá. Não fui criado nem em Manhattan nem em nenhum outro dos cinco boroughs.
Trump, sim, foi criado em Nova York. Em Queens. Mas no Queens de outrora, não o Queens de agora.
Vejam as imagens ao lado da casa em que Trump morou até a idade de quatro anos e a casa maior, no mesmo bairro, Jamaica Estates, em que a família morou subsequentemente. A família estava subindo na vida. Fred Trump, o pai do futuro presidente, construiu prédios de apartamentos e casas individuais em Queens e em Brooklyn para pessoas de meios modestos. Construiu milhares dessas habitações, e fez fortuna. Há indícios que Fred flertou com o Ku Klux Klan, há
indícios ainda mais fortes que a sua política de aluguel era discriminatória, mas vamos deixar as disposições do espírito de Fred para lá. Como empreendedor, Fred não se aventurou em Manhattan.
Levar a marca e o nome Trump para Manhattan era o empreendimento do seu filho, o agora presidente Pato Donald. O primeiro grande projeto de Donald em Manhattan era o Hotel Grand Hyatt, antigamente o vetusto e sofrido Hotel Commodore, ao lado da estação ferroviária Grand Central. Dali, Trump foi criando outros monumentos à sua visão faraônica e narcisista. (Ou faraônica implica narcisista?) Não sei se, estritamente falando, o Grand Hyatt fosse o último projeto que não levou o nome dele, mas em pouco tempo ele estava tascando o nome dele em letras garrafais acima da porta de entrada de hotéis, cassinos, prédios residenciais e comerciais, e campos de golf mundo afora. Acho que vocês sabem que Trump foi envolvido em pelo menos dois projetos, um deles de grande porte, no Rio, mas desistiu. Situações complicadas.
O mais famoso dos monumentos ao ego de Trump é, sem dúvida, a Trump Tower na Quinta Avenida em Manhattan, onde, até eleito presidente, ele morava numa cobertura de três andares. A esposa e o filho mais novo ainda moram lá. Cristiano Ronaldo tem uma residência no prédio também. Pagou US$18,5 milhões em 2015. José Maria Marin, pilantra brasileiro, mora lá, e eu acho que ainda veste tornozeleira. Não é o mais escandaloso prédio no mundo, mas há uma forte possibilidade que se sentiria mais a vontade num lugar ainda mais apego ao brilho falso como Las Vegas ou Dubai.
A viagem de Queens para Manhattan é um pouco complicado, apesar dos túneis e pontes. Claro, nenhum problema para a pessoa que acorda toda manhã em Queens, bota gravata, pega metrô, faz uma jornada de contabilidade ou não sei o que num prédio comercial em Wall Street, pega o metrô de volta, compra alguma coisa para comer no mercado da esquina, e senta-se em frente à televisão até que caia no sono. Mas para a pessoa que viaja de Queens para Manhattan para conquistar, como um Napoleão de negócios, há outras exigências. Norman Podhoretz, um autor e editor nascido em Brooklyn, escreveu no seu livro Making It (Conquistando) que a viagem entre Brooklyn e Manhattan era a viagem mais longa do mundo. Obviamente, ele não estava pensando na distância em milhas ou quilômetros. Estava pensando em mentalidades. Se a observação é justa, a viagem entre Queens e Manhattan talvez seja a segunda mais longa.
Aqui entra a roupa suja. Apesar da brasileirização dos EUA, ou seja, da amplificação, cada dia maior, do golfo entre os mais ricos e os mais pobres, os EUA ainda têm um lado extremamente democrático. Os EUA premiam o talento, e não importa se a pessoa talentosa começou a vida em Manhattan ou no Bronx ou em Queens ou em São João de Meriti, não importa se ela vem de uma família rica ou pobre, não importa a cor da pele ou a religião ou o país de origem – nesse sentido, todo mundo é igual. A diversidade é até procurada. Mas para pertencer ao clube dos super-ricos em Manhattan, há, não obstante, algumas exigências além de ser meramente super-rico.
Primeiro, tem de se participar da vida cívica e tem de se contribuir tempo e doar. Ronald Lauder, um dos herdeiros da fortuna das empresas de Estée Lauder, criou o museu Neue Galerie, de arte austríaca e alemã do começo do Século XX, frente ao Museu Metropolitano. Ronald Perelman, CEO de MacAndrews & Forbes Incorporated, doou US$50 milhões para o Centro Médico da Universidade de Nova York e US$100 milhões para a faculdade de gestão da Universidade Columbia, e isso só em 2013. Doou quantias semelhantes em anos anteriores e posteriores. Também serve como presidente do conselho de administração do Carnegie Hall. Henry Kravis, da firma de participações privadas Kohlberg Kravis Roberts & Co., serve no conselho de administração do Museu Metropolitano e também do Centro Médico Mount Sinai e ele também contribui centenas de milhões de dólares para instituições médicas e educacionais. O rol é longo.
Segundo, é altamente desejável, se não absolutamente obrigatório, ter um interesse na arte, e de comprar arte. Música? As regras são flexíveis. Mas quem assiste ópera ganha alguns pontos. E quem come como uma pessoa civilizada e não como um matuto ou um selvagem ganha alguns pontos a mais. Tudo isso, se poderia perguntar, é só um outro jeito de lavar, ou higienizar, o dinheiro? Ou seja, os super-ricos nova-iorquinos se sentem culpados por terem tanto dinheiro, e talvez pelo jeito pelo qual se enriqueceram, e é por esse motivo que eles devolvem tanto à fonte?
Pode ser. Mas, de qualquer forma, Donald nunca fez a sua parte. E, assim como Manhattan tem a capacidade de desconsiderar qualquer deficiência de origens nas pessoas que assumem as suas responsabilidades cívicas e seguem, pelo menos minimamente, as regras sociais, Manhattan pode ser cruel e esnobe a respeito de quem não assume essas responsabilidades cívicas e não segue, nem minimamente, as regras sociais. Para muitas pessoas que moram em Manhattan – e estou falando agora principalmente da classe média alta e não dos super-ricos – os quatro outros boroughs têm um nome coletivo, e esse nome é outer boroughs, os boroughs periféricos. Ou seja, pelo ponto de vista de Manhattan, Queens, Brooklyn, o Bronx, e Staten Island são todos iguais, qualquer que seja a ordem de picada interna entre eles. Além disso, as pessoas que moram nesses boroughs são, coletivamente, as bridge and tunnel people, isto é, as pessoas das pontes e dos túneis, porque, Manhattan sendo uma ilha, é só através das pontes e dos túneis que as pessoas desses outer boroughs chegam. Expressão, é claro, totalmente desdenhosa.
O Pato Donald podia, se quisesse, deixar a “mácula” de Queens atrás. Mas Donald, na verdade, nunca parou de ser uma pessoas das pontes e dos túneis. É um exemplo perfeito dessa máxima que toma a forma você pode tirar x de y, mas não pode tirar y de x – ou, no caso presente, você pode tirar o moleque de Queens, mas não pode tirar Queens do moleque. Fran Lebowitz, uma escritora nova-iorquina, tipo bicho de estimação dos ultra-ricos mesmo sem um tostão de dinheiro próprio, viu o descompasso entre o Pato Donald e o borough de Manhattan por uma ótica semelhante. Disse de Donald:
“He’s a poor person’s idea of a rich person.” Ele se encaixa perfeitamente na imagem que um pobre tem de um rico. (Lembra esse ditado de Joãozinho Trinta: “O povo gosta de luxo, quem gosta da miséria . . . , etc.) E Fran acrescentou: Essas torneiras de ouro na casa dele – são exatamente o que o pobre compraria se ganhasse a Mega Sena.
Nada, com certeza, contra a mulher-troféu. Toda terceira mulher no clube dos super-ricos em Nova York é uma mulher-troféu. Mas a ostentação de Donald num mundo que valoriza a discrição e o fracasso total a respeito das suas obrigações cívicas – essas duas falhas, para o clube dos bilionários, são simplesmente inaceitáveis. E, além disso, você viu essa gororoba que ele come com tanto gosto, como uma criança? Você viu as pinturas cafonas que ele coloca nas paredes? Principalmente, retratos lisonjeadores de si! E esses amigos duvidosos!
Conclusão? Donald nunca se deu bem com os outros bilionários nova-iorquinos, porque, não assumindo o papel exigido dele, implícita e explicitamente, ele foi rechaçado por eles? E não somente rechaçado mas desdenhado e ridicularizado? Como vingança, Donald foi cultivar os caipiras e os jecas?
Comecei, hoje, com a pergunta seguinte: Como é que o bilionário Pato Donald chegou a ser o queridinho e o potencial salvador das classes norte-americanas mais lesadas pela globalização e pelo arrocho geral? Propus uma explicação para porque, pelo menos durante a campanha eleitoral, ele não foi procurando a boa vontade dos outros super-ricos, foi procurando, antes, a boa vontade de pessoas em dificuldades. Mas a equação tem outro lado. Por que as classes lesadas pelas transformações econômicas das últimas décadas escolheram Trump como o seu campeão e não um líder saído das suas próprias fileiras? Vamos voltar a esse quebra-cabeça semana que vem.