Como todo mundo sabe agora, mesmo nos cafundós da Sibéria e nas areias sem meios de comunicação do Deserto de Gobi, Pato Donald, o presidente dos EUA, se alinhou, um tempo atrás, com Nicarágua e Síria no pequeno clube de nações que não vão participar do Acordo de Paris numa tentativa mais ou menos desesperada de reduzir o aquecimento global e salvar o pobre planeta. Cento e noventa e quatro países ainda estão assinados – quase o mundo inteiro. Cento e quarenta e oito já ratificaram o acordo ou nas suas legislaturas ou por outros procedimentos.
A teimosia da Nicarágua merece a nossa atenção. Na verdade, Nicarágua não se negou a assinar porque Nicarágua é um estado fora-da-lei ou um poluidor contumaz, como muitas pessoas, sem terem lido por baixo das manchetes, podem imaginar. Pelo contrário, Nicarágua se negou a assinar porque, segundo o seu representante Paul Oquist, o acordo é um acordo tímido que nem começa a resolver os problemas.
O Acordo de Paris almeja conter a temperatura média global do lado de cá de 2°C acima dos níveis pré-industriais. Mas a contribuição de cada país seria, no fim das contas, voluntária, e Oquist argumenta fervorosamente que o princípio de cumprimento voluntário do acordo garante o fracasso. Sem um mecanismo de aplicação com dentes, a temperatura média global subirá, tranquilamente, segundo Oquist, até 3 ou 4°C acima dos níveis pré-industriais. Morte e destruição se seguiriam em escala industrial. “Não queremos ser cúmplices”, disse. O único homem honesto na sala? Além do mais, as emissões de carbono da Nicarágua representam um mero 0,03% do total global. Mesmo se Nicarágua triplicasse ou quadruplicasse as suas emissões, não faria diferença alguma. Mas Nicarágua é, de fato, um dos mocinhos no cenário planetário. Oquist atesta que 52% da energia consumida no seu país já vem de fontes limpas. A meta para 2020 é 90%.
Estranho que, com quase 200 países no mundo de hoje, pequena Nicarágua, com sua história conturbada de somoza-ismo e sandinismo, emerge como o heróico portador da verdade, mas o acordo tem, sim, como Oquist indica, uma variedade de aspetos ridículos. Quando comecei a ler sobre os termos do acordo, que permite a cada país determinar seus próprios alvos, pensava num desses jantares comunitários em que cada participante leva um prato. No caso presente, Marrocos levará, provavelmente, um couscous; Japão, um sushi; Itália, uma lasanha; Brasil, uma feijoada. Mudando de metáfora, pensava também nessas famosas afirmações do programa de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos. Somos impotentes perante o nosso vício – no caso dos alcoólicos, o álcool; no caso dos poluidores, os combustíveis fósseis. Entregamos nossa vontade aos cuidados de Deus. Mesmo a administração Obama, que assinou o acordo, trabalhava assiduamente para que as metas não fossem ambiciosas demais. Outros grandes poluidores também.
Oquist argumenta que o acorda não vai longe o suficiente? Trump argumenta que o acordo vai longe demais. Inibiria o crescimento econômico americano. Mas, mesmo se tivesse razão (que não é o caso), valeu a pena tornar os EUA um estado pária? E não era somente a comunidade internacional que se entusiasmava pelo acordo – e vamos acrescentar, defeituoso mas provavelmente melhor do que nada. Conforme sondagens, sete em cada dez americanos – republicanos tanto quanto democratas – se entusiasmavam pela possibilidade de desacelerar o ritmo de aquecimento. Apple, Amazon, Facebook, Google, Gap, Adidas e dezenas de outras grandes empresas americanas suplicaram a Trump para não bancar o idiota e tirar os EUA do acordo. Mesmo General Motors e Ford, fabricantes do motor de combustão interna que contribui tão desproporcionalmente ao aquecimento do planeta, suplicaram ao Trump para não fazer o que ele ameaçava fazer.
E, imediatamente depois do discurso combativo em que Trump confirmou, finalmente, sua decisão de tirar os EUA do acordo de Paris, General Motors e Ford se comprometeram mais uma vez a construir veículos mais limpos e, em geral, aderir aos princípios do acordo. Afinal de contas, os fabricantes de automóveis americanos vendem seus produtos mundo afora, e não somente nos estados americanos negadores da mudança climática que votaram majoritariamente em Trump. Mesmo dentro dos EUA, Califórnia, o mais populoso dos 50 estados, pretende tornar suas leis a respeito das emissões bem mais rigorosas, sejam como forem as atitudes do presidente palhaço. Entre os outros desdobramentos, Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York e número 8 na lista da revista Forbes dos super-bilionários do mundo, prometeu a Emmanuel Macron, o novo presidente francês, que os EUA cumpririam suas obrigações sob o acordo de Paris apesar das atitudes do presidente palhaço; Bloomberg se comprometeu a contribuir US$15 milhões pessoalmente para apoiar o acordo. Burlando o idiota presidente, Jerry Brown, o governador de Califórnia, foi a Pequim para coordenar esforços com o governo chinês diretamente.
Mas por que, então, Trump desafia a opinião pública mundial e prefere a contramão da história à grande rodovia?
Tem três respostas críveis. Primeiro, é simplesmente na natureza de Trump de seguir caminhos particulares e perigosos. Nesse caso, a melhor palavra para ele em inglês talvez seja maverick. Não sei o que seria em português. Dissidente? Rebelde? Inconformista? Temos essas palavras em inglês também. Dissident. Rebel. Nonconformist. Mas maverick é um pouco diferente. Maverick é para mim, antes de mais nada, um animal. É um cavalo ou um bovino que corre livremente. Sem nada da ponderação, nada do raciocínio de um dissidente, um rebelde ou um inconformista. Hoje em dia, quando uma pessoa alega ser um maverick, está se gabando dos seus princípios independentes. Mas os cavalos maverick (ou mavericks, se pretendermos fazer essa palavra estrangeira conformar as regras de concordância em português) não têm princípios. Não fazem nada mais do que seguir sua natureza independente e sem lei. A etimologia da palavra, nada tendo a ver nem com latim nem com grego nem com as línguas germânicas medievais, esclarece. Samuel Maverick era um fazendeiro texano, do meio do século XIX, que não marcou seus rebanhos com ferrete.
Um animal sem marca, vagabundeando por lavouras alheias e destruindo plantações, tem de ser contido. Em algumas situações, tem de ser sacrificado. Mas não há nada cínico na atribuição da qualidade de um maverick a um animal. Não questionamos os motivos de um animal maverick. Às vezes, um animal doméstico suja ou destrói por ressentimento ou rancor. Mas um animal ao relento? Raramente. Um animal maverick não tem motivos; só tem natureza. Mas, quando perguntamos por que Trump desafia a opinião pública mundial e prefere a contramão da história à grande rodovia, tem duas possibilidades que imputam cinismo, sim, e uma imputa mais cinismo do que a outra.
Durante a campanha, Trump asseverou repetidamente que ele era o único dos candidatos, republicano ou democrata, que via a realidade claramente. Todos os outros eram burros. Não somente os candidatos mas todos os políticos, todos os tecnocratas, todos os burocratas, e todos os diplomatas também eram burros. Talvez até os generais pelos quais, em algumas situações, ele exprime respeito. Amigos brasileiros vêm me dizendo faz anos e anos que a palavra “estúpido” em português é diferente de stupid em inglês. Pode ser. Aceito o que vocês dizem sem ser totalmente convencido mas, de qualquer forma, o nosso Trump não foge de palavras fortes. Ele, ele insistia, não era político; era um homem de negócios bem sucedido e brilhante. Para os políticos convencionais, seus adversários em todas as fases da campanha eleitoral, sua palavra preferida era, em inglês, stupid – não no sentido de bruto ou grosseiro mas no sentido de faltando inteligência. (“Eu acho que ninguém sabe mais sobre impostos do que eu, talvez na história do mundo.” “Eu entendo dinheiro melhor do que qualquer um.” “Eu sei mais sobre renováveis do que qualquer outra pessoa na terra.” “Eu sou inteligente para caramba – eu estudei na Wharton School of Finance.” Não inventei essas jactâncias dele, juro. Só traduzi.)
Pode ser, então, que, simplesmente para sustentar a sua auto-imagem de portador de verdades que ninguém mais no palco descobre, ele não tem outra escolha exceto pegar caminhos que os políticos convencionais, burros e ignorantes, desaconselham, mesmo ele mesmo sabendo que os caminhos são perigosos ou errados. A terceira possibilidade é que, mesmo sabendo que a rejeição do Acordo de Paris seria um desastre pelo ponto de vista de (a) política pública e (b) relações públicas internacionais, ele – vamos ficar com as metáforas animais – tinha de atirar um osso a seus seguidores mais raivosos e, até agora, não atendidos à proporção que a política, como regra geral, exige.
Traduzo as primeiras linhas de um artigo que apareceu no The New York Times: “No momento em que a notícia que Presidente Trump se afastaria do Acordo de Paris sobre clima bateu num almoço de confraternização para proprietários de pequenos negócios em Toledo, Ohio, na quinta-feira, uma multidão já alegre de repente tornou-se eufórica. ‘Era como uma grande vitória de futebol,’ disse Rick Longenecker.” (Claro, o Rick estava pensando num grande vitória de football americano, não de futebol internacional.)
No meu último artigo, examinei um pouco a estranha simbiose que liga um bilionário para quem todo mundo, menos ele, é um loser, um perdedor, e as massas das classes desgastadas pela globalização. Ofereci uma teoria para porque Trump se alinhou com essas pessoas cuja experiência da vida e cujos interesses são tão diversos dos dele e, sem dúvida, em conflito com os dele. Ele não se deu bem com os seus irmãos bilionários. Eles, seus irmãos bilionários, não lhe deram a adulação que ele necessita do mesmo jeito que uma planta necessita de sol e água. Sendo um agressor por natureza, Trump queria triunfar sobre esses outros bilionários, e nenhum maior prazer lhe esperava do que prosseguir à vitória sem a ajuda deles – mas, antes, nas costas das classes mais lesadas por eles. Mas por que as massas ressentidas e amargas colocariam suas fichas em Trump? Por que essas pessoas não viam que ele não era nada mais do que um oportunista? E que ele as desdenha tanto quanto desdenha os seus bilionários irmãos? Eles não estariam mais confortáveis com um campeão saído das suas próprias fileiras?
Como disse outras vezes nestas páginas virtuais, estou fazendo um esforço para simpatizar com as pessoas que votaram em Trump. Primeiro, são seres humanos. Nossos semblantes. E estão agonizando. Eram os reis do pedaço, pelo menos na mente deles; agora estão sendo fustigados pelas mudanças estruturais na economia doméstica e global. Segundo, qualquer que seja o nome que damos agora à classe, ou às classes, dessas pessoas, classe operária, classe média, classe média baixa, elas são os herdeiros da classe operária que, durante a nossa fase marxista ortodoxa, ou pseudo-marxista, ou marxista meia-tigela, ia redimir o mundo para nós. Falo dessa fase antes de a gente descobrir outras categorias – negros ou índios navajos ou índios caiapó ou gays (ou, para os intelectuais franceses, os muçulmanos, predominantemente norte-africanos, indigentes nas periferias das grandes capitais européias) – para redimir o mundo para nós. Ou antes de decidirmos que aceitaríamos o mundo, com alguns pequenos ajustes, como está. Quero simpatizar com os eleitores de Trump, sim, mas eles jogam tantos obstáculos no caminho. São racistas. São hostis aos gays e a todo tipo de forasteiro, não somente os imigrantes. São mal informados. Quando a ciência e a Bíblia estão em conflito, eles frequentemente preferem a Bíblia. São mais suscetíveis a apelos emocionais do que a apelos racionais.
Pode ser que, durante a nossa fase marxista ou pseudo-marxista, a capacidade de avaliar evidências – como, por exemplo, as evidências às vezes confusas e contraditórias sobre o acontecimento global (“mas esse último verão foi tão ameno, não foi?”) – não parecia importar muito. A história tinha a sua própria lógica. A história, movimentada por leis, tinha até sua própria inteligência. Nessa fase do desenvolvimento de nosso pensamento, o indivíduo chegaria ao lugar certo se deixasse a história agir através dele. Se alguns indivíduos vissem claramente aonde a história apontava e se alinhassem com as tendências da história, ainda melhor. Se não, tanto faz. A história realizaria suas intenções inteligentes com o sem a cooperação dos indivíduos. Mas não temos hoje em dia a mesma confiança de outrora que as forças cegas da história resolverão tudo sem a inteligência humana e sem um monte de dados crus para a gente, na companhia dos nossos companheiros os computadores, analisar. Agora precisamos de especialistas – científicos, economistas, engenheiros, programadores de computadores, tecnocratas e tecnólogos de todos os tipos. Até de políticos inteligentes para equilibrarem os interesses e implementarem políticas sanas.
Mas parece-me lógico, ou pelo menos simétrico, que, se um grande número de indivíduos da ala intelectual da “burguesia” pudesse, durante uma grande parte do século XX, esperar ser redimido pela classe operária como uma massa, mesmo sem alguma manifestação de inteligência espetacular na parte dos indivíduos dessa massa, por que não a ala operária da classe média agora esperar ser redimida por um indivíduo, único e excepcional, da classe bilionária? (Ala operária da classe média? A confluência entre a classe operária e a classe média durante a segunda metade do século XX é uma das peculiaridades do cenário norte-americana.)
Mais peculiaridades da situação norte-americana: As classes que elegeram Trump perderam sua auto-confiança. A classe operária norte-americana fundiu-se com a classe média por um tempo? Agora está escorregando ladeira abaixo, e segmentos expressivos da classe média tradicional, de colarinho branco, estão no mesmo caminho. Essas classes precisam de campeões para conduzi-los para fora da espiral descendente em que se encontram. Deveriam, sem dúvida, desconfiar de qualquer bilionário. Mas há uma tendência nos EUA a confundir a riqueza e a inteligência. Uma pessoa como Trump ficou rico. É a prova que ele vê mais longe e mais penetrantemente do que outras pessoas. E o tipo de pessoa que votou em Trump desconfia mais de governo do que dos bilionários. Na visão dos eleitores de Trump, os governos, federal, estaduais e municipais, só esbanjam dinheiro. Esbanjam dinheiro para sustentar minoridades que, na visão deles, “não querem trabalhar”. Esbanjam dinheiro para apoiar pesquisas ditas científicas mas na realidade, na visão deles, totalmente fúteis. Item: Os Institutos Nacionais da Saúde forneceram US$3,4 milhões de dólares para a Universidade Northeastern estudar a “agressividade e nervosidade” de hámsteres enjaulados. Item: A Fundação Nacional da Ciência forneceu US$3 milhões para descobrir que a música-tema do filme Tubarão causa, em si, atitudes negativas a respeito do animal. Um dos mantras mais comuns entre as pessoas que votaram em Trump: O governo deveria ser gerenciado como uma empresa privada, ou seja, com um olho na contenção dos custos, e quem mais habilitado para gerenciar o governo como uma empresa privada do que uma pessoa que já ganhou uma fortuna em empresas privadas.
Li uma troca de idéias na Internet sob o título: “Why would middle class Americans vote for a billionaire like Donald Trump and why do you think a billionaire would have your interests if you’re not a billionaire?” – ou seja, algo como Por que eleitores americanos votariam num bilionário como Trump, e por que um bilionário representaria os interesses de não bilionários? Li um artigo na conceituada Scientific American sob o título Trump’s Appeal: What Psychology Tells Us” – ou seja, O Apelo de Trump: o que a psicologia ensina. Nada muito convincente em nenhum dos dois lugares.
Mas tenho uma idéia. Quando eu era jovem, nós – os rebeldes, os dissidentes, os inconformistas – éramos os que se divertiam. Somos nós que éramos promíscuos sexualmente, nós (não eu particularmente mas nós em geral) que fumávamos maconha e experimentávamos com LSD, nós que testávamos os limites da liberdade pessoal, e eles, os conservadores que agora torcem por Trump, eram, nessa época, os rabugentos, os desmancha-prazeres, os padres e pastores e policiais e autoridades em geral que advertiam que o preço das nossas liberdades seriam lesões cerebrais, um centro de detenção juvenil, morte precoce e provavelmente o fogo do inferno.
Não sei como aconteceu exatamente, mas agora somos nós que somos os rabugentos, os desmancha-prazeres, e os chatos em geral. Tornamo-nos os médicos e os burocratas da saúde pública que advertem contra a comida rápida, os refrigerantes, o açúcar, o sal, os cigarros – todos os pequenos prazeres da vida. Ah, sim, o sexo irresponsável também. Tornamo-nos os cientistas e os verdes que ficam apoplécticos quando um deles joga uma lata de cerveja vazia para fora da janela do carro ou joga uma bituca no chão. Tornamo-nos também os professores que repreendem a linguagem politicamente incorreta deles e os políticos que criminalizam a linguagem politicamente incorreta deles e os advogados que, por vezes, processam. Eles só querem expressar-se de uma forma natural e livre de hipocrisia. Querem divertir-se. Nós, agora, somos os censores.
E aí veio Trump. E tomou o partido deles. Não censurou. Deu aval. Um casamento feito lá no céu.