O Prensa de Babel acompanha o fato ocorrido no curso de Engenharia da UFRJ de Macaé e na tentativa de entender o ocorrido, além do óbvio ato racista, o cotidiano da Universidade precisa ser elucidado, porque segundo relatos, não é um ato isolado.
Partimos dessa informação e publicaremos, além do relato de uma aluna negra da UFRJ, o posicionamento do NEABI/Macaé – Núcelo de Estudos Afro Brasileiro e Indígena da Cidade Universitária de Macaé. Assim, acreditamos que ampliaremos a discussão sobre o caso e possíveis punições aos envolvidos no trote racista.
Relato da Estudante Universitária
“Me lembro quando cheguei a UFRJ, roupas simples e mochila do camelô. Parecia que tudo me mordia naquele lugar. Era bom dia, boa tarde, sim senhor, sim senhora, obrigada e desculpa. Tons baixos e voz medrosa. Apesar de o campus Macaé ser dito pequeno, para mim era enorme. Me falaram mais ou menos o que era o trote e o que era ser caloura. Algo do tipo: “você é um bebê na Universidade, é melhor seguir cegamente nossas dicas de pais veteranos e participe do trote! Deixa te pintarem e fazerem o que quiserem com você para que você já seja bem aceita no meio universitário.”
Pois bem, apesar das ameaças, participar do trote também é um privilégio para alguns e ele não é para uma mulher preta. Se você mora no Lagomar, duas horas de distância da Universidade e além disso trabalha em algum serviço autônomo para ter dinheiro pra ir nas aulas, você não vai ficar no trote. Você vai para casa.
Adiantar matéria, trabalhar, ajudar seus pais (ou melhor, sua mãe preta que também é sozinha) … Não dá pra ficar até dez horas da noite pedindo dinheiro no sinal. Não julgo quem fica e quem participa, na verdade, tinha até um pouco de inveja de quem depois iria poder ir no churrasco de integração. Muitas coisas mudaram. Hoje, no meu 7º período, aprendi um lugar muito bonito, porém as vezes desconfortável: o lugar de fala.
Dentre outras coisas, boas e ruins da Universidade, o que mais me espanta é a velocidade e ingenuidade que os atos racistas se propagam. Não foi uma e nem duas vezes que ouvi: “mas eu não quis dizer isso.” “Essa não foi a minha intenção.” “Como você entende tudo como racismo”. Ouvir isso no meu curso já é bem comum apesar de eu considerar ele um dos mais negros e femininos da Instituição. O caso de black face nesse ano é o ápice do que todo estudante negro sabe que acontece na graduação. Nós, como negros somos sempre uma piada pronta. Se falamos sério, riem, se falamos alto riem, das nossas roupas riem, se choramos riem, se rimos… nossa, como a minha risada é uma piada… parecemos uma chacota pronta.
Nossas escritas, artigos perguntas e respostas. Meu deus! como meu corpo negro é tão engraçado! Assim, com essa estruturação histórica do racismo, se pintar e lembrar de mim como eu me visto nos “freelance” de garçonete é engraçado também…, mas é claro, fiquem tranquilos, eu sei que a intenção não foi essa e cabe a justiça brasileira julgar o caso. Fico imaginando como o racismo está presente e naturalizado em profissões historicamente racistas e machistas. A minha prima que fez 3 semestres em engenharia, prima esta preta e gorda como eu, desistiu do curso e vai para pedagogia, disse que estava cansada de sofrer…
Naturalização do racismo e saber que tudo irá se resolver com uma nota nas redes sociais e um pedido de desculpas. Naturalização do machismo é saber que é a foto de uma mulher que está circulando nas redes sociais e a mesma, que passou para um curso dominado por homens, está sendo até ameaçada. Apesar de errada, ela é a ponta mais fraca desse ato. É óbvio que é bem mais fácil ameaçar uma caloura, do que se levantar contra veteranos que quem estuda ali, sabe que essa não foi a primeira ação “meio que estranha” deles.
Como membra de diversos movimentos sociais dentro da Universidade, luto para que essa realidade do um foi “sem querer, querendo” mude. Isso só será possível com o estendimento da lei, que visa os estudos afrodescendentes, para a educação superior em todos os cursos com carga horário obrigatória. Se (re) educar jovens majoritariamente brancos vai acabar com o racismo dentro das instituições, eu não sei. Porém, pelo menos irá nos garantir, que em algum lugar, antes de cometer algum ato racista, os brancos de dentro da Universidade, saibam o que estão fazendo, que o racismo, não seja mais um: desculpa, foi sem querer.”
Nota Oficial do NEABI
Macaé, 07 de março de 2020
O Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena da cidade universitária de Macaé (Neabi Macaé) repudia os atos realizados pela Comissão de Trote do Curso de Engenharia da UFRJ/Macaé nas atividades de recepção de calouros.
Na ocasião, uma estudante recém chegada à universidade teve o seu corpo pintado com tinta preta. Além disso, em seu rosto, se observa alguns detalhes em tinta de tonalidade mais clara, de modo que os lábios assumem contornos grossos e os olhos são destacados. A caricatura construída ridiculariza as características fenotípicas da população negra, sendo uma prática violenta amplamente conhecida como blackface e, portanto, inaceitável e criminosa.
Tal prática reforça e revisita comportamentos repugnantes de movimentos supremacistas brancos que nos assombraram no passado e que, atualmente, tem encontrado espaço diante do clima de ascensão do fascismo em várias partes do mundo, a exemplo do Brasil.
Uma vez confrontados com as verdades desconfortáveis e diante das repercussões das denúncias dos internautas, nas redes sociais, a comissão de trote da Engenharia/2020 se posicionou, em sua página virtual, pedindo desculpas, porém se recusando a reconhecer o que está óbvio aos olhos: a ocorrência de prática racista que deprecia e reforça estereótipos negros.
Não existe justificativa aceitável! E a negação em nada contribui para a resolução do problema, pelo contrário, ajuda a “manter e a legitimar as estruturas violentas de exclusão racial” (KILOMBA, 2019, p.34). O caminho para mudança exige o reconhecimento dessas práticas violentas e a responsabilização exemplar de seus autores. Portanto, é imperiosa a criação de novas configurações de poder e sobretudo, em espaços públicos de produção de conhecimento tal como as universidades.
O Neabi Macaé e a Comissão de Direitos Humanos e Combate a Violência foram convidados pela Direção do Campus UFRJ Macaé para participar do processo institucional que apurará o caso. Reitera-se que mobilizaremos todo nosso capital intelectual e a força de nossa ancestralidade no combate a todas as formas de violações de direitos humanos e a nossa dignidade. Faremos a nossa parte na luta antirracista!
No entanto, consideramos importante manifestar publicamente que, para nós, “não é suficiente fazermos apenas a oposição ao racismo, pois após a resistência haverá um espaço vazio” (KILOMBA, 2019). Sendo assim, consideramos que é preciso construir um novo caminho, isto é o que Bell Hooks (1990, p. 15) denominou “tornar-se, fazer-se de novo”. Seguiremos insistindo que a nossa Instituição, como um todo, deva se comprometer com a pauta antirracista e nos apoiar em ações que viabilizem práticas educativas, sobretudo os estudos das s relações étnico raciais.
Diante do ocorrido, temos recebido vários convites para compor rodas de conversa sobre o tema “racismo”. Apoiaremos a todos os esforços e atenderemos a todas as iniciativas que estiverem em nosso alcance, pois é o nosso compromisso. Porém, nos perguntamos “e quando a poeira baixar?” Aguardaremos o próximo episódio? Nossas decisões do presente devem ser, acima de tudo, duradouras e transformadoras. Por isso, CONCLAMAMOS O CORPO SOCIAL DA UFRJ MACAÉ para o estabelecimento de uma agenda que privilegie a educação antirracista, que implique na mudança dos planos institucionais, planos pedagógicos e projetos de ensino. Desejamos que os conteúdos programáticos contemplem outras epistemologias (negras, indígenas), e que, como resultado, possamos ver a transformação das práticas e das relações, produzindo a eliminação de preconceitos e violências de qualquer natureza.
Aproveitamos a oportunidade para mencionar que, desde 2018, no segundo semestre de cada ano letivo, o Neabi Macaé oferece uma disciplina eletiva e integrada (UFF Macaé e UFRJ Macaé) intitulada “Tópicos em Relações Étnico Raciais”. Os frutos desse curso são: a realização de um Colóquio da Consciência Negra e, neste ano, os trabalhos finais integrarão um dossiê temático que compreende o debate do racismo no contexto universitário. Todxs estão convidadxs a participarem/difundirem a disciplina, assim como fazerem do dossiê um material consultivo. Porém, mais do que um convite, aclamamos a chamada de Conceição Evaristo (2007, p.21) Precisamos deixar de “ninar os da Casa Grande, e sim incomodá-los em seus sonos injustos”.
Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena da Cidade Universitária de Macaé
Assinam juntamente conosco:
Liga Acadêmica de Saúde Coletiva de Macaé – Lascom
Comissão de Direitos Humanos e Combate à Violência (CDHCV UFRJ)
Diretório Central dos Estudantes da UFF Macaé
Direção da UFF Macaé
Grêmio Estudantil Nelson Mandela
Referências Bibliográficas
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação- Episódios de racismo cotidiano. 1ª Ed. Cobogó, 2019.
HOOKS, B. Yearning. Race, Gender and Cultural Politcs. Boston: South End Press, 1990.
EVARISTO, C. Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio. Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. (org). Belo Horizonte, Mazza Edições, 2007, p 21.
Estamos abertos a qualquer questionamento e mais relatos sobre as práticas do curso de Engenharia e do cotidiano da UFRJ.