Estava no boteko do Don Nicola, antes do Sarau Revira-Volta acontecer, na expectativa e ansiedades básicas pré-evento. Chega dois rapazes pretos, Moisés e Samuel, moradores de Monte Alto, periferia de Cabo Frio. Os dois são catadores de material reciclável e fazem isso todo o santo dia.
Era o dia da consciência negra e eles ali conversando, em um lugar de acolhimento, pois o Don Nicola de vez em quando os ajuda com almoço ou com um trocado. Fiquei olhando para os dois, revisitei meu léxico militante, minhas conceituações sobre racismo, preconceito e discriminação, o que poderia ser resistência e realmente percebi, de novo, o quanto de inoperância existe no discurso a partir daquilo que é objetivo e prático.
O nosso povo tá no precário, vive no precário e precisa do precário pra comer. Não há uma resolução de pequeno, médio ou grande prazo pra isso. O prazo seria romper com a estrutura, ou com as grandes estruturas. Como rompe?
Gostamos das grandes narrativas para explicar o que somos e como somos. E ainda corremos o risco de sermos interpretados de maneira equivocada, por pessoas de variadas matizes sociais, às vezes por ignorância, às vezes por dissimulação.
E em terra brasilis, a dissimulação é mãe do público. Por que digo isso? Pessoas como Moisés e Samuel podem ser usadas pra diversos exemplos. Exemplo de um projeto sobre negritude e como ele tá dando certo, exemplo de pessoas que mesmo na periferia, escolheram o caminho do trabalho em vez da criminalidade, exemplo do racismo estrutural, que não permite pessoas pretas irem muito longe, exemplo de que tem haver uma mudança radical na sociedade.
E além dos olhares condenatórios, das piadas mal intencionadas e dos xingamentos que esses garotos devem receber diariamente, cabe pensarmos nossa incapacidade de admitirmos o quanto estamos longe de qualquer solução plausível para que pessoas como Moisés e Samuel comam todos os dias, possam ir à escola sem impeditivos e possam ter acesso a bens culturais e materiais sem grandes esforços.
O discurso de lutar e conseguir pode convencer muita gente, mas pra uma parcela nem chega porque simplesmente não faz sentido. Ser discriminado por ser preto é algo tão corriqueiro e constante e o desespero real mesmo é de não conseguir sustentar os seus, seu grupo, sua família por mais um dia. E entenda por família, uma configuração complexa, além do que é passado na novela.
As pessoas são obrigadas a serem fortes, a serem resistentes, a serem resilientes. Obrigadas. Se não for, o trator passa e se for, o trator passa do mesmo jeito. O mundo se torna o lugar de opções discursivas, sem opções práticas além da sobrevivência e não existe nenhuma proposta plausível pra se romper com isso porque nem se pensa nisso direito.
Já ouvi que deveríamos preparar os nossos para o Mundo de merda no qual vivemos desde crianças. Um mundo sem massagem, sem vontade que cheguemos a algum lugar, um mundo que não deixará de cuspir e nos dar rasteira sempre que puder. E que nossa dor diária e constante não pode ser palanque para se tentar participar desse mesmo mundo.
Realmente não sei o que fazer, só sinto que minha literatura anda gasta e o que o ruído nos assola. Vem na minha memória o Moisés e o Samuel dobrando a esquina, indo embora, pois estava ficando tarde para eles. Tá ficando tarde pra nós, tá ficando…