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«O homem irritado» de Ghislaine Howard
«O homem irritado» de Ghislaine Howard

«Tomara que ele morra! Tomara que um ônibus passe por cima dele!» – exclamou o Alan, enquanto olhava através da janela. Desejara jogar o seu celular à parede e quebrá-lo em milhares de pedaços, mas simplesmente o deixou cair no chão, quicando e indo à sacada.

O café tinha se esfriado e o sol começava a brilhar cada vez mais forte. O dia vai ser uma grandíssima bosta– pensou amargamente, ao mesmo tempo que apertava os dentes.

Quinze minutos atrás ele tinha aberto os olhos, e depois de ter visto a hora -o relógio marcava seis horas e trinta essa manhã- souve que já nao conseguiria dormir novamente. Acontece que cada vez que ele desenmaranhava os cílios e separava as pálpebras, elas só voltavam a se unir quando a noite já tinha conquistado o espaço do céu. E um dia feriado, que tinha sido pensado para dormir o mais que puder, já tinha o seu primeiro plano sendo destruído como se fosse um guardanapo de papel.

E ainda recebeu um segundo tapa da vida nessa manhã, quando viu várias mensagens que tinham chego no seu celular, onde pôde ler que seu parceiro da vida -hoje ex- lhe informava que não suportava mais a sua negatividade e que preferia passar um tempo sozinho, para refletir sobre a vida. E falava isso logo depois de ter subido às suas redes sociais fotos ao lado de um dominicano da pele cor de ébano e um corpo mais do que invejável, de quem semanas antes tinha pedido para não se preocupar pois eram simplesmente amigos.

«Tomara que morram os dois juntos!» – gritou mais uma vez, exaltadissimo.

Não passou mais do que um minuto e escutou a campainha da porta, que ecoou como se fosse uma sirene de polícia.

Olhando pelo buraco da chave, conseguiu divisar um vestido cor verde escuro com estampa de flores rosas que cobria uma figura idosa, tão velha quão sábia. E aliás, curiosa. Era a Glória, a aposentada vizinha que morava no apartamento do lado. Certamente já devia ter notado que o seu ex namorado, outrora visitante frequente e quase residente do prédio, não tinha vindo dormir aquela quinta-feira à noite como fazia cada semana sem falta há vários anos.

«Garoto, ouvi gritos! Tudo bem aí?» – a escutou perguntando, com aquela estridente e irritante voz aguda. 

Abriu a porta e sem mudar no mais mínimo as expressões do seu rosto que eram tão rígidas que parecia que teria uma câimbra, olhou fixamente nos olhos dela, e em menos de cinco segundos, recitou claramente, para ela entender a mensagem que os seus lábios estavam proferindo:

«Isso não é da sua conta, sua velha fofoqueira?»

Surpresa, ficou com os olhos tão abertos que nem a sua boca, ao mesmo tempo que a porta era fechada de um sopetão na sua cara, mexendo os finos cabelos sobre a sua testa.

Sentando-se no sofá e com a respiração ainda agitada, tentou refletir no que tinha acontecido, e porque tinha acabado ficando solteiro mais uma vez. E, como a pessoa prática que ele era, começou a planejar a série de atividades que o manteria ocupado para evitar que acabasse pensando mais uma vez no seu ex.

Prepararia um pão caseiro e limparia exaustivamente a sua casa. Iria ao parque da cidade e correria duas horas, minimamente, ou iria na academia. Os seus pensamentos foram mais uma vez interrompidos por alguém chamando à porta. A Glória não devia ter entendido o recado e queria perguntar novamente, o que não seria a primeira vez que acontecesse.

Quando abriu a porta, estranhou quando viu que aqueles que estavam chamando à porta eram na verdade dois homens jovens, um deles albino e com uma grande e branca barba, e outro de pele morena e com uma enorme pinta que cobria uma quarta parte do lado esquerdo do seu rosto. Ambos usavam um uniforme que consistia em uma camisa social azul celeste, uma gravata borboleta azul -mais escura-, do mesmo tecido que as suas calças e mocassins brancos. Nos bolsos das suas camisas tinham bordado o logo da cidade, e tinham coladas as suas identificações. Em letra maiúscula, estava escrito: PREFEITURA MUNICIPAL DA INMACULADA – SECRETARIA MUNICIPAL DA ORDEM KÁRMICA – DIVISÃO CENTRAL DO PAGO JUSTIFICADO DO KARMA EM VIDA.

«Vocês estão de sacanagem? O que é que é isto?»

Enquanto eles tiravam umas maletas, e através de um antiquado rádio avisavam a alguém que já tinham achado o “devedor inadimplente”, procederam a explicar a sua chegada. O albino tirou da maleta uns papéis e uma caneta preta, enquanto o da pinta no rosto começou a falar de um jeito que lhe recordava o seu primeiro professor da escola fundamental, o que fazia o seu sangue ferver ainda com mais raiva.

«Senhor Alan Carpenter? Nós pertencemos à Secretaria Municipal da Ordem Kármica, que pertence à Prefeitura. O senhor acaba de ultrapassar as injúrias e xingamentos aos seus próximo, específicamente às seis horas, trinta e três minutos e cinco segundos da manhã de hoje. Foi então que continuou nisso que seus vizinhos geralmente chamam de ‘maus desejos’  até menos de um minuto atrás. Temos o dever de lhe informar que a partir dessa data todo aquilo que seja negativo será devolvido ao senhor, e também tudo aquilo que seja positivo que saia dos seus lábios. Comumente essas dívidas são pagas quando a pessoa morre, em um juízo express, mas como falamos, o senhor ultrapassou e isso raramente acontece nessa parte do mundo. É algo bem próprio do sul da Espanha e Portugal. Não sabemos o porquê disso, acreditamos que seja algo cultural. Então, sem mais nada a acrescentar, e como o senhor já foi devidamente informado, nos retiraremos. Desejamos que tenha uma excelente manhã, até mais!».

O Alan estava mais imerso em um estado de confusão que de raiva. Pelo menos, isso era uma leve melhora no seu estado de espírito.

O karma realmente existia? Aparentemente, sim. E dependia da prefeitura. Felizmente, ele tinha pago todos e cada um dos seus impostos.

Foi à cozinha e começou a preparar a massa daquele pão que tanto amava e tinha planejado fazer. Quando abriu o pacote da farinha de trigo, a campainha tocou mais uma vez. E mais uma vez, com uma cara de claro desânimo, foi atender. Sem ver quem era, abriu a porta sem pensar.

Era a sua vizinha, novamente. Estava em pé no corredor, com as mãos enfiadas no bolso do avental de cozinheira.

«Desculpe-me, Glória. Estava em um momento ruim e me excedi com as palavras. Eu imploro à senhora que me perdoe» – expressou em um tom muito mais calmo, mostrando real arrependimento.

Só que essa vez, as expressões da mulher eram diferentes. Muito mais sérias, tanto quanto as suas intenções.

Retirando as mãos do bolso, o Alan pôde ver uma enorme faca de açougueiro, com um pedaço de cebola grudado no cabo.

Rápida nos seus movimentos, e muito mais do que é esperado em uma pessoa da sua idade, esticou a sua mão esquerda e deu uma única e certeira facada no seus estômago.

«Ninguém fala comigo desse jeito, seu merda».

Dando marcha-ré e derramando litros de sangue, o Alan chegou na sacada, escorregando com o celular que tinha deixado cair um momento atrás, para ele cair no pavimento desde o quinto andar, moribundo, para ser finalmente morto por um ônibus urbano que acabou de virar rapidamente na esquina.

No outro lado da calçada, sentados em um café e bebendo um capuccino com croissants, estavam os dois homens da secretaria da Ordem Kármica.

Usando o mesmo e antiquado rádio, o albino avisou ao seu superior que o devedor tinha por fim pago a sua dívidas.

No final das contas, todo mundo sabia disso. Tudo volta.

 Por Javier Ulla – Psicólogo, LGBT orgulhoso, professor de idiomas estrangeiros, viciado em chimarrão e cerveja, amante das línguas e dos thrillers psicológicos.


Saiba um pouco mais do autor 

Naseu em junho de 1989, em uma cidade do noroeste argentino chamada Santiago del Estero, ano que transformou a história do mundo por causa das Revoluções que derrubaram os Estados Comunistas do Bloco do Leste, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Cortina de Ferro na Europa.
Esse ano também nasceu Taylor Swift e segundo a astrologia chinesa foi o ano da serpente.
Muita coincidência para um ano só, o que só pode ter como resultado o nascimento de quem escreve hoje essas palavras.
Vinte e cinco anos depois mudou-se à região dos Lagos no Rio de Janeiro, Brasil, para viver experiências novas e largar a sua antiga vida no sertão argentino de peronismo ou neoliberalismo, de Pátria ou corporações.

Leia outros contos de Javier

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Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

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