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Tecido adiposo – Um conto de Javier Ulla

Essa manhã o sol presenteava um brilho que as plantas agradeciam e fazia os pássaros orquestrarem as melhores e mais variadas apresentações musicais da natureza. A duzentos metros da farmácia onde o Apolo acabara de ingressar, o mar refletia as cores de um céu sem nuvens, adentrando-se na fina areia da praia no centro da cidade.

Esse era o dia que ele havi esperado por mais de um ano. Desde que tinha retornado à solteirice, depois de que seu antigo parceiro o tivera trocado por um colega de trabalho, alegando que, entre outras coisas, a sua aparência física tinha «mudado para pior», não parou de exercitar-se fisicamente duas vezes por dia: cada manhã correndo dez quilômetros na praia e toda tarde indo à academia a fazer musculação, paralelamente a uma dieta que, até aquele dia, não tinha dado lugar a deslize nenhum.

Se bem que o seu corpo nunca o envergonhou, inclusive quando todo mundo falava para ele que tinha sobrepeso demais (especialmente o seu antigo parceiro, sobretudo naqueles instantes mais íntimos e passionais), esse dia a felicidade o ultrapassava e parecia afogá-lo. Tinha comprado uma nova sunga com estampa de zebra -sempre nesse duvidoso gosto pessoal que o caracterizou, e se dispôs a tomar sol o dia inteiro frente ao mar, enquanto bebia sucos naturais (sem adição de açúcar) e quem sabe, talvez uma caipirinha como prêmio.

Quando subiu na balança, e viu os ponteiros indicando que, fisicamente, depois de tanto tempo e esforço, tivera alcançado seu tão cobiçado peso ideal; sorriu com tanta vontade que os seus lábios pareceram rasgar-se. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e até mesmo uma ousou cair pela sua bochecha esquerda. Era o Apolo de sempre e que havia desaparecido baixo camadas de tecido adiposo, glúten e baixa auto-estima. Mas isso já tinha chegado a seu final. Agora retornara reluzente, da mesma maneira que o sol voltava cada dia, depois de esconder-se ao anoitecer.

O relógio marcava às oito horas. A sua corrida diária já tinha acabado e só restava voltar em casa, tomar um banho gelado e preparar seu equipamento de praia para relaxar-se e desfrutar do belo dia que a natureza tinha lhe concedido.

Mas antes, consumaria o seu tão desejado plano, organizado meticulosamente há um ano já. Não era nada do outro mundo. Era simplesmente comprar a sua sempre preferida barra de chocolate, a mesma que não apreciava há já doze meses. Depois de tantos sacrifícios, esse era um luxo que merecia ser vivido.

Saindo da farmácia, entrou em uma casa de doces onde costumava comprar todo tipo de deliciosos biscoitos, balas e refrigerantes. Dirigindo-se até a parte traseira, onde poderia encontrar todas as promoções de cacaus e chocolates, divisou claramente a sua oferta predileta. Graças a Deus -pensou Apolo- o dono continuava fazendo esses descontos. Eram três barras de chocolate Mineiro com pedaços de amendoim pelo preço de uma. Um dia de exagero não iria matá-lo.

Nunca chegou tão rápido ao quarto andar do prédio onde morava, pulando vários degraus de uma vez. Tomou uma ducha rápida, e vestiu a sua última aquisição de moda praiana. Por cima vestiu uma camisa branca com estampa de limões, e um chapéu Panamá da cor do osso. Pronto, o dia seria esplêndido.

Botou os seus óculos de sol e sem demoras, foi à sala, onde tinha deixado as compras. Pegou a primeira das três barras e a admirou uns segundos. O logotipo tinha sofrido algumas alterações durante o período que não consumiu nada que estivesse fora do seu regime alimentício.

Com suavidade, tirou o chocolate do envoltório. O cheirou todo, como se fosse um cachorro aproximando-se às partes íntimas de um desconhecido e cortou uma porção.

Enfiando todo na boca, degustou uns segundos. Tocando o céu com a língua, não sentia isso há muito tempo.

Fechou os olhos e até pôde lançar um «Mmmm» de prazer ao ar.

Enquanto se olhava a si mismo fixamente ao espelho, devorando cada grama como se fosse uma fera que disputava um pedaço sanguinolento de carne fresca, lembrou a sua avó quem, durante a sua infância, sempre lhe disse que comia tão rápido e sem respirar que parecia uma cobra engolindo um rato.

Bebeu um copo d’água e sentou no sofá para respirar. Fazia já bastante tempo que não engolia tanta comida em um período tão curto de tempo.

Sem notar, como se tivesse feito o melhor sexo da sua vida, juntou as pálpebras e caiu em um leve sono que não roubou mais do que quinze minutos da sua vida.

Não passou muito tempo até que uma ardente sensação na sua barriga o despertou. Quando viu que era o seu abdômen que estava inchado e o elástico da sunga apertava a área por baixo do umbigo de um jeito tal que sentia que a pele iria rasgar-se.

Sem duvidar, tirou ela.  Depois de tanto tempo comendo o mais saudável possível, não o surpreendeu que o inchaço fora provocado por comer tanta matéria gordurosa.

Pesadamente, dirigiu-se ao banheiro, onde procederia a limpar o seu rosto cheio de chocolate. Estava tão sujo que parecia ter caído de cara no barro.

«Foi muito bom» – pensou o Apolo. Realmente, tinha sido assim.

Decidiu então não estrear as suas roupas de praia. Vestiu no lugar um short branco e botou umas alpargatas da mesma cor nos pés. Iria descer pelas escadas, andando como tinha feito sem parar cada um dos últimos trezentos e sessenta e cinco dias da sua vida.

Foi pensando no chocolate que tinha comido. Era melhor que todo parceiro e amante que tinha passado pela sua vida. Inclusive se sentiu estupendo pois não tinha escovado os seus dentes e podia sentir ainda o sabor da sua saborosa refeição. Foi então quando ouviu o barulho de um vidro estalar e viu o espelho na sua frente, no final do corredor, quebrando-se em milhares de cacos que, felizmente, não lhe provocaram nenhum ferimento.

Olhou para baixo e viu que a sua barriga tinha crescido imensamente, ficando cheia de estrias, enquanto a gordura corporal tinha ocupado os seus peitorais, que agora pareciam dois seios de mulher, permitindo que os botões da camisa saissem disparados como balas, o que provocou aquela cena que se não o tivesse como protagonista, consideraria hilária.

Apesar do pavor que tinha se apoderado da sua alma, começou a rir histericamente. O seu ventre era agora o dobro do tamanho que tivera alcançado quando decidiu mudar os seus hábitos alimentícios tempo atrás.

Passando os dedos pelas estrias, tão vermelhas e profundas que pareciam cortes de espada, notou que, embora não quisesse acreditar, a verdade era aquela. O seu corpo estava crescendo espantosamente como nunca teria imaginado que fosse possível.

Sentia cócegas nas pernas e nádegas, assim como nos braços, pescoço e rosto.

«Que ridiculez!» – sussurou o Apolo,  dando meia volta e se dirigindo ao seu apartamento, com o único fim de vomitar cada miligrama do chocolate ingerido, hábito que não ocupara seu tempo desde a adolescência.

Respirando profundamente, e contando mentalmente até mil, tentou serenar-se. Procurou tirar as chaves do seu bolso direito, porém as mãos dificilmente couberam alí. Quando finalmente as teve entre seus dedos, abriu a porta rapidamente, para evitar dar de cara com os vizinhos que não demorariam a se apresentar para ver o que tinha provocado o barulho dos cristais estalando.

Agitado e físicamente exausto, o suor da sua testa caia como rios d’água salgada. Quando conseguiu abrir a porta, contemplou na sua frente um problema ainda mais intrincado: o tamanho da sua barriga era maior que o da porta.

Ficando de lado, contou até três. Não poderia continuar fora, aos olhares de todos, e se suas proporções continuassem acentuando-se, preferiria fazê-lo escondido.

«Um, dois e… MERDA, PUTA QUE PARIU»

O Apolo tinha ficado preso no marco da porta. Começou a chorar, angustiado. Foi nesse exato momento que a escutou, desde o final do corredor, estridente e penetrante.

«Mãe! Tem um senhor muito gordo querendo entrar na casa do Apolo!» – Era a Bianca, a garotinha de cinco anos que morava poucas portas depois.

Mesmo sem poder ver exatamente quem estava se aproximando, ouviu os passos dos curiosos vizinhos que apressadamente chegaram.

«Sou eu, o Apolo! Socorro, por favor!» – implorou, uivando.

Uma hora mais tarde, não só os seus vizinhos, inconfortáveis testemunhas da desgraça alheia, estavam também os bombeiros, que aos poucos derrubavam a parede a marteladas, para lograr tirá-lo dessa situação.

A Bianca, apavorada ante tamanha cena, gritou mais uma vez, deixando o Apolo ainda mais sufocado pela vergonha.

«O noticiário chegou, mãe!»

Abeirando as câmeras à sua barriga, e desde a janela que dava à rua, com escadas, gravando-o, os repórters entrevistavam ao antigo parceiro que ao telefone reafirmava que o Apolo nunca tinha se importado com o seu estado físico e não se surpreendeu ao saber que tivesse alcançado aquele aberrante peso.

Quando o buraco que estava sendo criado na parede para ele ser resgatado, um fragmento enorme de parede caiu sobre a sua cabeça, desmaiando.

«Apolo, acorda!»

Devagar, recobrando a consciência, notou as quatro paredes brancas que o circundavam. Estava no hospital. Dirigindo o seu olhar à esquerda, viu a Bianca e a sua mãe que tinham ido visitá-lo.

Agora compreendia tudo, era simplesmente um sonho! Não tinha engordado nem uma grama, e provavelmente o chocolate fez que desfalecesse no prédio, e nesse desmaio teve aquele horripilante pesadelo do retorno à obesidade.

Lançou ao ar uma gargalhada de alívio. Ali estavam presentes seu ex e vários dos seus amigos.

«Ficou em coma quase um ano, Apolo. Nesse tempo fizeram em você um bypass gástrico. Você perdeu quase cem quilos».

Contemplou a vista através da janela. O mar batia sem parar as rochas da praia, e no final da baía, nuvens escuras ameaçavam com esvaziar o seu conteúdo sobre os tetos da cidade.

 

 


Saiba um pouco mais do autor 

Naseu em junho de 1989, em uma cidade do noroeste argentino chamada Santiago del Estero, ano que transformou a história do mundo por causa das Revoluções que derrubaram os Estados Comunistas do Bloco do Leste, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Cortina de Ferro na Europa.
Esse ano também nasceu Taylor Swift e segundo a astrologia chinesa foi o ano da serpente.
Muita coincidência para um ano só, o que só pode ter como resultado o nascimento de quem escreve hoje essas palavras.
Vinte e cinco anos depois mudou-se à região dos Lagos no Rio de Janeiro, Brasil, para viver experiências novas e largar a sua antiga vida no sertão argentino de peronismo ou neoliberalismo, de Pátria ou corporações.

Leia outros contos de Javier

https://prensadebabel.com.br/index.php/2018/04/23/tomara-que-morra/

 

 

 

Noticiário das Caravelas

Coluna da Angela

Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

Coluna Clinton Davison

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