O confronto entre bandas de rock e religiões no mundo é bastante conhecido e não é só uma contenda ocidental. Ainda outro dia, uma banda de heavy metal iraniana conseguiu fugir do país após seus integrantes terem recebido sucessivas ameaças de morte. É que em pleno país dominado pelo fundamentalismo islâmico, a banda gritava a plenos pulmões contra o mal que a alienação religiosa faz aos jovens daquele país.
Este mês, um dos pais do rock faz aniversário: a banda Beatles completa 50 anos de seu surgimento. Em meio a muitas comemorações e recordações, surge uma notícia que espantou o mundo. O jornal do Vaticano L’Osservatore Romano acaba de lançar uma matéria louvando a importância dos Beatles para a música e para a sociedade. Quem diria: logo o Vaticano, que fez uma grande campanha contra a banda inglesa na década de 60, chamando-a, entre outras coisas, de “música satânica”.
Muito da animosidade da igreja dirigia-se na época também a John Lennon, que disse em certa ocasião que era mais conhecido do que Jesus. O que ele na verdade quis dizer é que em muitos países do mundo o nome de Jesus nem era ouvido, conquanto o poder da mídia radiofônica e televisiva era capaz de fazer pessoas menos importantes como ele mais conhecidas. É óbvio, que no antro da idolatria cristã da época, não se admitia frases daquele tipo. A cruzada dos religiosos contra o rock, portanto, não é coisa de hoje. Ela é muito mais antiga e atingiu bandas com repertório doce, embora contestador, como o dos quatro cavaleiros de Liverpool.
Certa vez, o crítico Rogério Dapieve definiu o rock como “o estilo musical universal do inconformismo”, expressão que costumo sempre repetir sem muitas vezes dar-lhe o crédito. A diferença de postura entre rock e religião é óbvia e clara. Para os rockeiros, somos nós, como coletivo organizado e militante, que devemos mudar o mundo e as coisas que estiverem erradas. Para as religiões, é você sozinho tendo fé no altíssimo ou o próprio Deus.
As religiões em geral são conservadoras por excelência, atribuindo as mazelas humanas à vontade de Deus ou a da falta de fé pessoal. Religião, em geral, é conformismo, embora os neopentecostais usem o inconformismo com a pobreza como forma a tentar convencer os fiéis de que essa questão é meramente individual – o que é uma ideologia capitalista por excelência
Deve ser muito difícil para as igrejas hoje reconhecerem que os Beatles fizeram mais pelos avanços civilizacionais do que elas. Na década de sessenta, a Igreja Católica e as igrejas protestantes lutavam contra a emancipação da mulher. Elas defendiam que a mulher havia nascido para casar, cuidar dos filhos, do marido e do lar. Trabalhar e estudar atrapalhariam suas “nobres” vocações.
O prazer sexual também era visto como instância de exclusivamente masculina, cabendo à mulher apenas “servir” ao marido. Os papéis de ambos os sexos deveriam estar definidos até nas roupas e nos cabelos: ternos e calças em tons amenos para os homens, saias longas e vestidos de cores mais claras para as mulheres, assim como cabelos curtos para os homens e longos para as mulheres.
Bom, não é necessário ir muito longe para mostrar que os rockeiros hippies dos sessenta e setenta jogaram toda essa visão absurda que se tinha dos gêneros na privada da história. Basta olhar o mundo ocidental atual. E os Beatles tiveram um papel essencial nesse processo, pois foi uma das primeiras bandas que conseguiu dirigir suas mensagens diretamente aos ouvidos das mulheres.
Mas não era só isso, amigos. As igrejas naquela época também lutaram contra todas as bandeiras dos rockeiros: igualdade racial, sexo livre e descriminalização do homossexualismo. As grandes bandas de rock, exceções feitas aos emos alienados atuais, o rock gospel e outros oportunistas eventuais, lutam ainda hoje também contra a guerra e contra a exploração econômica e religiosa, fenômenos que, infelizmente, tinham e ainda têm a permissividade ou mesmo o apoio da maioria das igrejas cristãs. Os rockeiros, por exemplo, tiveram mais envolvimento na determinação do fim da guerra do Vietnã do que todas as igrejas do mundo reunidas.
Para que o mundo melhore ainda mais, precisamos de novos Beatles a cada década e cada vez menos “verdades” religiosas, pois estas com certeza serão atiradas no lixo. No futuro, olharemos para as religiões atuais com o mesmo espanto que olhamos a religião medieval. Porém, tal como Galileu e Copérnico, os John Lennons e os Renatos Russos do rock serão imortalizados.
Texto de opinião. Não corresponde necessária mente a opinião do Prensa.