Era um sábado ensolarado no começo da década de 90. Eu estava estava com meus amigos da universidade no alto do morro da Chácara do Céu, a parte mais alta do Morro do Borel, na Tijuca. Lá entrevistamos alguns moradores para um projeto cujo objetivo era contar a história da ocupação do morro.
Naquela época, a imprensa noticiava que alguns casos de Cólera foram registrados no país, principalmente no Norte. Corria o boato de que outros casos foram notificados em São Paulo e no Rio de Janeiro. No morro do Borel, o grupo de traficantes locais tinha mais medo que a doença chegasse ao alto do morro da Tijuca, do que das incursões da Polícia. Lembro-me de caminhar pelas casas e perceber apreensão das pessoas. Era um Sábado ensolarado com um ar fresco e carregado de eletricidade.
Como se sabe, o Cólera é uma epidemias das mais mortais, com um alto índice de mortalidade. O Rio de Janeiro, em meados do século XIX foi assolado por esta doença, matando milhares de pessoas, a maioria escravos. Os primeiros casos do Cólera foram registrados em Belém do Pará, quando um navio português vindo de Lisboa trouxe imigrantes doentes. A epidemia rapidamente espalhou-se pelo resto do país, atingindo a Bahia, São Paulo e o Rio de Janeiro.
O pânico gerado pela epidemia foi tal que cidades inteiras ficaram vazias, com a população fugindo para o campo. No Pará, ainda existe uma tradição oral transmitida de geração em geração, onde é possível encontrar referências que a cultura popular fez sobre esta terrível doença.
A cidade do Rio de Janeiro, antes de ser “maravilhosa” foi conhecida ao longo de séculos, como um “porto doente’. Na história da cidade, não existe registro de cronista que não fizesse alusão ao estado doentio do povo carioca, notadamente dos escravos. Por séculos, todos sabiam que uma das principais causas das constantes doenças da cidade, era a continuidade do tráfico de escravos. A história mostra também que muitas doenças encontraram porto seguro na cidade, por conta deste mesmo tráfico de escravos.
A Febre amarela, “O vômito negro” e a varíola eram hóspedes com cadeira cativa na cidade do Rio de Janeiro. Raro eram os anos em que estas duas doenças não marcassem sua presença, levando sempre suas vítimas.
Rio de Janeiro, Janeiro de 2018. Duas técnicas de enfermagem foram sequestradas de um posto municipal por traficantes e levadas para a comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo no Grande Rio para aplicar a vacina contra a febre amarela. O traficante “2N”, do bairro do Salgueiro em São Gonçalo, mandou que sua quadrilha fizesse fila, e seus membros foram todos vacinados contra a Febre Amarela. Muita coisa se pode tirar deste incidente, ao mesmo tempo insólito e tão significativo.
Os meios de comunicação informavam que havia um estoque de vacinas para todos, mas mesmo assim, as pessoas acorreram aos postos como se a doença estivesse batendo na porta de suas casas. O medo que o povo da cidade do Rio de Janeiro tem destas doenças, não é apenas o pânico moral provocado por um ataque de histeria coletiva. A atitude dos traficantes do Salgueiro mostra que em algum lugar da memória coletiva do povo carioca, as marcas das constantes epidemias está lá impressa.
A história de que o Rio de Janeiro foi transformado em uma “Cidade Maravilhosa”, tendo como moldura as belezas naturais as suas praias é muito recente, não tem mais que 70, 80 anos. A “Praia” foi se consolidando cada vez mais como um espaço onde as pessoas iam buscar não apenas lazer, mas principalmente Saúde. Por muito tempo, ir à praia era tido muito mais como uma medida preventiva contra as doenças do que apenas uma diversão.
Na medida em que as condições de saúde foram melhorando, ao menos no que se refere às doenças infecto contagiosas, o medo popular contra as epidemias foi arrefecendo. É interessante observar que ao longo do século XX, a mortalidade do carioca foi mudando de perfil. As doenças contagiosas foram superadas pelo aumento de mortes provocadas por doenças não transmissíveis, como as doenças do aparelho circulatório e as neoplasias.
Na medida em que o carioca foi ganhando mais tempo de vida, este “presente” também veio acompanhado pela incidência de doenças não transmissíveis. Além disso, a mortalidade por causas externas, principalmente aquelas provocadas pela violência e pelos acidentes trânsito, também aumentaram fortemente ao longo do século XX. Hoje, o grande medo do carioca não é mais a morte pela epidemia, mas aquela provocada pela violência.
Nessa cidade dominada pelo medo e abandono a imagem de um grupo de traficantes perfilados de maneira obediente à espera de uma dose de vacina dada pelo traficante que é seu chefe, resume à perfeição como o Estado deteriorou-se em todos os seus sentidos.
A doença é também uma metáfora, ensinava Susan Sontag. Compreender o significado destas metáforas faz parte da cura.