Vivemos em um país onde grande parte da população é formada por pessoas pretas ou miscigenadas, eu arrisco o palpite que o número de pessoas pretas aumentaria se o racismo não fosse tão cruel em nossa sociedade. Não culpo os negros que não se identificam como tal, pois ser preto no Brasil não é nem um pouco agradável já que esse marcador social da diferença, a cor da pele, traz junto dele um histórico de descaso e violência.
Os homens negros são os que mais morrem vítima das mais variadas formas de violência e têm os piores postos de emprego. As mulheres negras são as que ocupam também as piores atividades laborais, as menos remuneradas, de menor status social.
Somos as maiores vítimas da violência doméstica e as que menos casam formalmente ou têm relacionamentos estáveis (Não que eu ache que as pessoas devam casar, mas como o casamento é uma instituição valorizada em nossa sociedade, o não casamento de um segmento pode nos dizer muitas coisas, inclusive sobre o racismo). O modelo de relacionamento inaugurado no período colonial continua servindo de parâmetro para o nosso “Admirável Mundo Novo”.
Freyre em sua consagrada obra “Casa Grande e Senzala” narra o modelo de sociedade que foi forjada no Brasil colonial e que ainda é subsídio para a estrutura social atual. Ou seja, o negro como o pilar do trabalho braçal. Tanto o homem quanto a mulher negra eram vistos meramente como um corpo de serviço.
A mulher negra não servia só na cozinha, tendo na cama do senhor uma atividade extra. O estupro era uma realidade tão cruel quanto o uso dos filhos desse crime como a renovação do estoque de mão de obra. Sendo assim, o senhor colonial montou sua própria pirâmide hierárquica e colocou a mulher negra, no que diz respeito aos relacionamentos ou uniões civis, como o elemento que não está dentro dessa classificação.
Pois como nos mostra Freyre, um ditado popular que era muito comum nesse período, “A branca para casar, a mulata para fornicar e preta para trabalhar” nos dá um parâmetro de como se consolidou os lugares sociais que determinadas mulheres deveriam ocupar na hierarquia social e afetiva.
Porém, no desenvolvimento das atividades laborais a mulher negra figurava no topo da pirâmide social da sociedade colonial. Pois era dela a responsabilidade de todos os trabalhos de limpar, cuidar, servir, criar e até mesmo amamentar os filhos dos senhores e senhoras desse período.
Essas relações de poder criaram a naturalização do preconceito contra as mulheres negras, (contra a população negra como um todo, mas quero fazer aqui um recorte de gênero.) a começar pelo preconceito estético. Pois a beleza da mulher negra não é reconhecida. O cabelo da mulher negra é fonte de chacotas e a base de enriquecimento da indústria cosmética que lucra com a imposição do padrão europeu do cabelo liso como sendo o mais bonito e sinônimo de higiene, cuidado e asseio pessoal. É a tentativa de minimizar a negritude e se aproximar do padrão estabelecido.
A supremacia branca ditou exclusivamente por muitos anos o que era belo ou não gerando uma padronização e uma insegurança na mulher negra sobre sua autoimagem. A mesma foi estilhaçada no início do que hoje chamamos Brasil. Um projeto eurocêntrico com objetivos bem claros de dominação que tratava a população negra como coisa. Mesmo com a abolição da escravidão as marcas desse período são latentes e ainda fazem vítimas fatais.
Em nome dessa padronização e aceitação social somos especialistas em verdadeiros rituais, que envolvem dor e sofrimento. Esses rituais usam produtos químicos ou instrumentos mecânicos, conhecidos respectivamente como alisantes ou a versão atualizada do pente quente que é a chapinha. Dentre as várias demandas da identidade da mulher negra o cabelo sempre teve um lugar de destaque. Sempre foi motivo de sofrimento. Ao menos essa é a minha experiência como mulher negra.
Hoje com o avançar das lutas por igualdade de condições vemos um contra-ataque daqueles e daquelas que historicamente ocupam lugares privilegiados e nunca sofreram discriminação e preconceito por sua cor da pele ou pelo seu gênero. Daqueles que nunca tiveram sua humanidade negada por conta das características físicas ou foram escravizados e humilhados por mais de 300 anos. Daqueles que nunca foram perguntados na porta do seu novo emprego se “era da limpeza”. (nada contra ser da limpeza, mas parece que preto só pode ser da limpeza) Daqueles que nunca foram parados na blitz por ser preto. Daquelas que nunca ouviram: “Ela é bonita, mas é negra”.
Somos censurados quando uma situação visivelmente racista nos acontece e sempre ouvimos: “Pega leve, você vê racismo em tudo. Foi só uma brincadeira”. Seu filho provavelmente nunca foi seguido nos corredores, porque uma senhora viu um “negrinho”, uma criança de 7 anos de uniforme subindo correndo as escadas do prédio do seu trabalho. Você provavelmente nunca deixou de ser apresentado para família de sua nova namorada ou namorado porque a família dela(e) não aceitariam o relacionamento.
Talvez você nunca tenha ouvido o seu/sua crush dizer que você é recalcada (o) quando ele(a) decide assumir publicamente um relacionamento com uma pessoa branca, depois de romper um relacionamento de meses ou até mesmo anos as escondidas com uma mulher ou homem negro. Talvez você nunca tenha ouvido seu paciente lhe dizer que não queria seu atendimento pelo simples fato de você ser negro, ou como costumam dizer aqui no Brasil, para não ofender, né! “Pessoa de cor”. Porque aqui existe o racismo cordial.
Talvez você seja contra as cotas para negros no vestibular e no concurso público. Talvez você nunca tenha ido para uma entrevista de emprego que seu empregador disse que a vaga havia sido ocupada quando ele constata que você é negro. Ou um contrato de trabalho, que foi todo feito por e-mail ter sido cancelado quando do primeiro encontro presencial. Mas se denunciamos é vitimismo.
Talvez você nunca se relacionou afetivamente com pessoas negras porque cresceu ouvindo que “Preto quando não caga na entrada, caga na saída.” Com tantos fatos e dados, somos acusados de identitarismo, vitimismo, mimimi, dramáticos, chatos, recalcados e até invejosos. Tanto o movimento negro quando o movimento feminista negro, reivindicam o seu lugar de fala. Pois a nossa perspectiva, nossas experiências e a nossa voz foi historicamente silenciada e quando resolvemos não mais nos calarmos ou deixarmos o outro falar por nós, as acusações vem de todos os lados.
Talvez você nunca tenha vivenciado uma situação igual as apontadas acima por dois motivos bem simples: Você é branco (a) ou você já viveu e não conseguiu identificar que estava sendo vítima do racismo à brasileira! Pois como disse a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?” “Sim, o Brasil é racista, e o ódio contra a população negra existe desde que o primeiro navio negreiro aqui chegou.” Só por isso…
*Renata Souza é bacharel em Sociologia e Mestra em Sociologia Política