Tomasz é um rapaz pobre, vindo do interior, mas que consegue ingressar numa faculdade de direito e se manter em Varsóvia, com a ajuda de auxílio de um casal rico. Ele ainda tem um crush em Gaby, filha do mesmo casal. Mas a vida é uma caixinha de surpresas e, em uma bela manhã de sol, o rapaz é pego por plágio em um artigo. Sem muita cerimônia, ele é expulso da faculdade. Ele então, tenta manter as aparências para ficar bem com Gaby. Arruma um emprego em uma agência de publicidade e, aos poucos, vai conseguindo estreitar os laços com sua amada, uma menina bonita, alegre, porém problemática, que não conseguiu atingir as expectativas de seus pais por conta do envolvimento com drogas.
Em um dos raros momentos em que é realmente honesto em toda a história, Tomasz conta, durante uma brincadeira de “verdade ou consequência”, a Gaby que havia sido expulso da faculdade, mas garante que vai reembolsar os pais da menina. Masela conta o segredo aos pais que também não tem piedade do rapaz. Assim, Gaby se afasta totalmente dele que resolve focar seus talentos e sua inteligência ao seu trabalho.
A agência de publicidade em que Tomasz vai trabalhar atua também no gênero mais lucrativo e proeminente da atualidade: a de produção de Fake News, o que casa perfeitamente mau-caratismo de nosso protagonista. Depois de demonstrar um talento raro e aptidão para o serviço, seu salário aumenta e ele recebe novos trabalhos. Um deles é justamente desmoralizar um político de esquerda, que, para a “sorte” de Tomasz, é apoiado pelos ricos pais de Gaby. O que se inicia a partir daí é uma vingança na qual o protagonista vai nos impressionando pela sua inteligência, pela determinação e pela total falta de caráter e limites.
Filme polonês, dirigido pelo premiadíssimo Jan Komasa, que foi indicado a melhor filme de língua não inglesa em 2017 por Corpus Christi, Rede de Ódio traz semelhançasinstigantes com outras produções, seja a série “You” do mesmo Netflix, seja no filme já clássico A Rede Social, seja no sucesso de 2019, Coringa, que deu o Oscar a Joaquim Phoenix este ano.
Vemos um personagem que vai se transformando ao longo da história e ficamos em dúvida se ele sempre foi assim ou se foi “evoluindo” sua psicopatia aos poucos. Sabemos que Tomasz tinha problemas de caráter desde a primeira cena, mas, ao contrário do Coringa de Joaquim Phoenix, não vemos ele ser levado ao extremo para justificar as reações. Ao contrário, a atuação introspectiva do jovem,MaciejMusialowski, nos deixa saber que ele está em conflito, está buscando saídas, está planejando alguma coisa. Mas só vamos ter certeza extensão do que está por vir quase no final.
A fotografia, o figurino e a maquiagem atuam de forma impecável para passar os sentimentos de Tomasz insiste em “tentar” nos esconder, colocando o expectador em um jogo de gato e rato com o filme, que hora nos dá, hora nos tira informações da trama com a segurança de quem tem um desfecho espetacular para entregar e entrega.
Há momentos em que Tomasz parece um vampiro, disposto a sugar a energia de todos ao redor. Ainda assim, o ator é carismático o suficiente e o personagem sofre injustiças o suficiente e trabalha, se esforça o suficiente para nos trazer aquele sentimento de cumplicidade que Alfred Hitchcock nos obrigou a ter com Norman Bates em Psicose (1960).
A montagem opta inteligentemente por não mostrar alguns pontos chaves da história deixando algumas lacunas que vão ser preenchidas mais tarde e os personagens secundários são bem construídos. Destaque para AgataKulesza como a chefe de Tomasz na agência que se torna uma tutora do mal para os caminhos tortos do personagem e MaciejStuhr como Pawel, o político de esquerda que demonstra uma ingenuidade que, às vezes, é conveniente demais para o roteiro, chegando a lembrar o presidente dos EUA de HouseofCards. O roteiro, aliás, coloca vários personagens vulneráveis diante de Tomasz, como se ele fosse um lobo no meio de cordeiros. Sim, há algumas facilitações como o fato doPawel ser financiado pelos pais de Gaby, mas achei bastante aceitável e plausível.
Mesmo quando Tomasz consegue um cumplice para fazer um serviço mais, digamos, pesado, este é escolhido justamente por suas vulnerabilidades que podem ser exploradas por Tomasz. Ele, porém, em momento algum se torna um vilão caricato. Ao contrário, a câmera nos coloca sempre diante de seu olhar para que possamos tentar decifrar o que vai pela sua cabeça. Em determinado momento ele tem realmente boas ações. Aliás, se acompanhamos a história de vingança desenfreada de Tomasz, são suas boas ações que residem os momentos chaves da história. De fato, parece que Rede de Ódio é um filme sobre um cara mal que tem lampejos, tentavas de fazer a coisa certa. O problema é que algumas boas ações de Tomasz são recompensadas, outras são punidas. Já as ações ruins do personagem, a exceção do plágio no início do filme, são todas recompensadas. Sim, Rede de Ódio é um filme em que o mal, às vezes, compensa, assim como a vida real.
Mas talvez o grande valor de Rede de Ódio e maior justificativa para assisti-lo é sua contemporaneidade. Confesso que estou curioso para saber se este filme se manterá atual nos próximos anos. Afinal, a especialidade de Tomasz e da agência que ele trabalha é a criação de Fake News com o objetivo de desmoralizar e destruir pessoas públicas, principalmente por objetivos políticos. Ora, vivemos em plena era do sucesso da manipulação de opiniões com essas combinações de robôs, perfis falsos, notícias mentirosas e frases cirurgicamente projetadas para manter a popularidade de políticos ou garantir a eleição deles.
Assim, Rede de Ódio é quase um manual didático sobre o funcionamento de técnicas das empresas de Fake News que atuam ainda muito livremente no mercado mundial em função de ser algo relativamente novo em termos políticos. Embora saibamos que as Fake News existem e são usadas para fins políticos desde o mundo é mundo. Basta lembrar da Guerra de Troia, aquela em que os gregos disseram que foram embora e deixaram um cavalo de presente, ocorreu em torno de 1200 anos antes de Cristo. E a própria Polônia, onde o filme se passa, foi palco de um famoso caso de Fake News na Segunda Guerra Mundial quando Adolf Hitler simulou o ataque a uma rádio alemã para justificar a invasão da Polônia. Mas os instrumentos é que são novos. No caso, o Facebook, o WhatsApp, o Twitter não têm 20 anos de existência ainda. Mal existiam dez anos atrás. E Tomasz vai nos dando sucessivas aulas de como são facilmente usados para o mal com a pior das intenções.
Outro fator interessante é que poloneses foram, durante anos, vítimas de racismo. Alfred Jarry, poeta francês, um dos pais do teatro moderno, iniciava sua peça mais famosa, O Ubu Rei, com a frase “Na Polônia, ou seja, em lugar nenhum”. Adolf Hitler fez um longo discurso sobre a preguiça dos poloneses, sua inferioridade como raça, sua insignificância para justificar a invasão e anexação do país. É na Polônia que fica o famoso de campo de concentração de Auschwitz operados pelo Terceiro Reich, maior símbolo do Holocausto perpetrado pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Chega a ser surpreendente, em função deste contexto histórico, saber que a ascensão de grupos de extrema direita justamente neste país, que tanto sofreu nas mãos dos nazistas.
Outro ponto interessante é o paralelo que o filme faz entre Tomasz e o perfil dos apoiadores da extrema direita tanto na Polônia, quanto no resto do mundo, inclusive nos EUA e no Brasil. O clima de revanchismo e ódiopresente nas táticas das fake News, na manipulação de massas e na criação de gabinetes torna a história de Tomasz uma espécie de alegoria. Afinal, ele é expulso da elite intelectual após não conseguir seguir as regras vigentes por esta mesma elite. Ferido e humilhado, ele enxerga na empresa de fake News uma oportunidade de vingança, de dar o troco nesta mesma elite, incentivando o ódio e levando o mesmo até às últimas consequências. Em uma cena chave, Tomasz faz um verdadeiro discurso de justificativa de ódio onde entendemos suas motivações, afinal, ele foi impedido de maneira impiedosa a ter acesso a um lugar ao sol na elite intelectual de seu país. O caminho que encontrou foi utilizar de uma empresa de fake News e de seus métodos escusos e propagação de ódio para se aproximar novamente de um status junto à elite.Não é preciso muita imaginação para entender o paralelo, a partir do título original do filme, O Hater, de Tomasz com a verdadeira rede de ódio que vem se formando no mundo bipolarizado contemporâneo, uma vez que temos, como um dos principais alvos destas redes, a ciência, os professores, os acadêmicos, os cientistas, ou seja, pessoas que simbolizam a elite intelectual. Será que, assim como Tomasz, esses Haters se sentiram excluídos ou humilhados por algum motivo do meio acadêmico? Pelos intelectuais de esquerda? Pelos defensores do politicamente correto?
Qual será a parcela de culpa da elite intelectual nesta rede de ódio? É uma pergunta que o filme deixa no ar e que merece ser pensada e respondida.
Rede de Ódio (Sala Samobójców. Hejter) –Polônia, 2020
Direção: Jan Komasa
Roteiro: MateuszPacewicz
Elenco: MaciejMusialowski, Vanessa Aleksander, DanutaStenka, JacekKoman, AgataKulesca, MaciejStuhr
Duração: 135 min.