Gustavo, como juiz ficou à frente da 1ª vara da Comarca de Búzios por 8 anos, e surpreendeu ao deixar a magistratura para seguir uma nova carreira
Era mais uma dia agitado na rotina de Gustavo Arruda como juiz da 1ª vara da Comarca de Búzios. Uma terça-feira, dia dedicado às audiências criminais. Tinha bastante trabalho. Arruda me atendeu no espaço entre uma audiência e outra. Me contou, inclusive, que esse tipo de caso consome 30% do seu tempo no município. Mas também havia um clima de despedida.
“Nas terças faço audiências criminais. Na quartas eu fiz, por muito tempo, as audiências do juizado cível, adjunto cível, que responde também por mais ou menos 30% do tempo, embora em volume de demanda, seja muito maior. Nas quintas-feiras eu fazia as audiências cíveis, incluindo as de família”, contabiliza.
Antes da entrevista, o jovem juiz, agora com 38 anos, nascido em Jundiaí -SP, transitou apressado pelos corredores do fórum sendo saudado pelos funcionários e amigos que fez ao longo de 8 anos morando e trabalhando em Búzios.
Sim, como noticiado com exclusividade pela Prensa, Gustavo está deixando a cidade, a comarca, e o magistrado também. Foi aprovado no 11º concurso do Tribunal de Justiça de São Paulo para assumir uma delegação extrajudicial de Registros e Imóveis na cidade de Aguaí, no interior do Estado.
Casado, tem duas filhas ainda pequenas, se formou em direito na Universidade de São Paulo (USP), não seguindo a carreira dos pais, que são médicos, advogou por alguns anos em São Paulo, fez especialização na Albert-Ludwigs- Universitat Freiburg, na Alemanha, e em 2012 foi aprovado no concurso para juiz, mesmo ano em que chegou em Búzios.
“Não fui o primeiro colocado, fui o 7º. Mas ninguém queria vir para Búzios por ser considerado um lugar complicado. Tinha tido antes da minha chegada uma situação desafiadora na Comarca e isso afastou os primeiros colocados de Búzios, e sobrou pra mim”- revela, mas deixando claro que veio muito animado. Já conhecia a cidade pela fama e afirma que foi muito feliz nos anos que trabalhou e viveu em Búzios.
“Foi uma decisão familiar. Eu e minha esposa nos conhecemos ainda no colégio e nos reencontramos bem depois da faculdade, tinha acabado de passar no concurso do Rio. Ela é publicitária de formação, aqui o mercado, mesmo no Rio, é bem restrito. São Paulo, e até Campinas, é grande, tem outras possibilidades”, explica.
Da mesma forma serena e focada que marcou sua passagem como juiz, seguiu respondendo mais algumas perguntas, sempre afirmando não ter segredos incomunicáveis, e assumindo que escolheu ter uma vida discreta, afastada dos atores políticos e econômicos da cidade, para que isso não influenciasse em suas decisões como juiz.
“Gostei demais da conta de morar em Búzios. Mas tem suas peculiaridades, mesmo sendo uma cidade pequena. Tem pessoas muito influentes morando aqui, com casas aqui. Desembargadores, Ministros do STF, juízes de outras comarcas e Justiças. Existem interesses que são os mais diversos em cima da cidade. Minha estadia aqui só deu certo porque mantive uma vida muito reservada. Ninguém me viu por aí andando de braços dados com atores da política ou da vida econômica da cidade, destacou.
Prensa de Babel: O senhor está realizando hoje audiências criminais, quais os crimes mais comuns em Búzios?
Gustavo Arruda: Pela ordem de grandeza nas criminais, o maior problema é o tráfico de drogas, mas no varejo, não no atacado. Não são casos grandes de tráfico. É o chamado pequeno comércio de drogas e armas de fogo. Também casos de habilitações falsificadas. São os casos mais comuns em Búzios. E tivemos casos de maior visibilidade. Julguei atores políticos da cidade: ex-prefeitos, ex-secretários. Em todos esses casos eu fui firme quando deveria ser, mas nunca deixei de absolver quando cabia isso.
Prensa: A postura reservada que o senhor escolheu ter nesses quase 10 anos em Búzios tinha esse objetivo, o de permitir um julgamento mais frio, digamos assim, em casos que envolviam personagens políticos, por exemplo?
Arruda: Acredito que sim. Decidi antes de vir para cá ter mesmo uma conduta bem reservada para não atrapalhar meu julgamento. Não sou do estado do Rio de Janeiro, não tenho parentes no Rio de Janeiro, não tenho parentes comerciantes ou políticos aqui. Tivemos personagens complicados aqui da Comarca, polêmicos, que foram condenados por mim quando necessário, mas também foram absolvidos quando não era caso de condenação. Eu tentei sempre acertar e não tomei as dores de agentes políticos da cidade. Nunca levei para casa os problemas do fórum. Uso a capa preta aqui, porque depois penduro ela no cabide e vou pra casa. Não tenho o telefone de nenhum agente político ou econômico da cidade, nem de advogados.
Prensa: O senhor tem ciência que a população percebeu isso, e inclusive lamenta sua saída da Comarca?
Arruda: Sim, sim. Por mais vil que fosse o personagem, e a gente sabe que eles não valem muita coisa, ainda assim eu procurei julgar sempre com objetividade. Sempre tentei não confundir as coisas. Tem pessoas que são boas, mas que também cometem erros e precisam de uma repreensão jurídica.
Prensa: Quais desses casos envolvendo políticos locais considera de maior repercussão?
Arruda: Na seara criminal teve casos de repercussão, especialmente alguns referentes ao período inicial do município (pós emancipação) que envolveram um ex-prefeito e alguns ex-secretários. Esse período inicial do município foi muito confuso, muito difícil para a cidade que começava, mas na minha concepção, houve um certo aproveitamento dessa situação de caos para se fazer algumas coisas que não se deve fazer. Teve muita dispensa de licitação, muita dispensa indevida. Era um momento difícil para a cidade, como já disse, mas uma coisa não justifica a outra e algumas condenações existiram sim.
Prensa: Por que o senhor está deixando a magistratura?
Arruda: Não é que a magistratura me desagrade, como já disse, foi uma decisão feita em família. Havia a possibilidade de voltar para casa, isso pesou. A magistratura tem muitos campos de atuação: tem juízes que se dedicam à parte administrativa do Tribunal, que é legal, e tem a parte acadêmica que também é legal. Eu queria me dedicar à parte acadêmica, mas isso se desenvolve na capital. O Rio não é próximo de Búzios. Também o Estado passou a ter problemas a partir de 2014 e isso refletiu no Tribunal, na questão de orçamento, e no suporte que o Tribunal dava ao meu trabalho. Além disso, faltam no serviço público em geral, e na magistratura em particular, mecanismos adequados de reconhecimento do bom trabalho. A meritocracia é muito contaminada pela política atualmente, dentro da magistratura e dentro do funcionalismo em geral. E as pessoas que realizam um bom trabalho não são reconhecidas, ficam frustradas, e eu me sinto incluído nesse ponto. Porque eu não faço política. Eu nunca usei e acho horrível, o juiz que usa do seu poder de decisão para fazer política. E infelizmente é uma coisa que vez ou outra a gente observa ou suspeita que aconteça.
Prensa: Mas da forma como se organiza o Estado Brasileiro, o Judiciário é um dos Três Poderes, o que já imprime um fator político, não?
Arruda: O Judiciário é um Poder Político sim, mas não deve fazer política. Eu explico: o juiz é um agente político por ser o Judiciário um dos poderes do Estado. Mas não se deve confundir isso com a prática da política como a luta por interesses. O Judiciário não é um canal para a colheita de interesses políticos. É feio quando o juiz faz isso. Me refiro a todos: desde juízes de Supremo até o de Primeira Instância. Todo mundo tem uma inclinação política, e é até normal que ela se reflita de alguma maneira em suas ações e decisões. Mas não podemos usar essa ideologia para influenciar os julgamentos. Imagina se eu fosse de direita, por exemplo, e só tomasse decisões negativas para as pessoas de esquerda? Eu nunca fiz política para conseguir meus objetivos profissionais. Para alcançá-los eu investi no trabalho suado aqui, chegando cedo e saindo tarde. Eu entrei aqui e trabalhava de 8 da manhã até as 10 da noite.
Prensa: Sobre o que o senhor disse do horário de trabalho que cumpriu aqui, na publicação que fez em sua conta no Instagram, afirmou que pegou a Comarca em um estado muito difícil. Como foi esse período e o que encontrou quando chegou?
Arruda: O que aconteceu, pra começo de conversa, é que antes da minha chegada aqui em Búzios, a Comarca ficou vaga por oito meses. E isso já é suficiente para deixar uma vara desse perfil em uma situação muito complicada. A situação da vara foi notícia na imprensa e não cabe a mim aprofundar isso aqui. Mas eu abracei de coração e enfiei a cara no trabalho, chegava cedo e saia tarde. Perdi grupos de apoio ao Tribunal e no começo tive retorno, mas com a crise no estado do Rio não teve mais como. Meu trabalho então começou a ficar meio perdido e também passamos a perder alguns funcionários.
Prensa: Por que perderam funcionários?
Arruda: Búzios tem um custo de vida alto, então muitos preferem viver nas cidades vizinhas: Cabo Frio, Rio das Ostras. Não é todo mundo que quer ficar enfrentando também o trânsito na alta temporada. Tivemos momentos difíceis e foi frustrante.
Prensa: Vimos uma foto sua despachando uma pilha de processos. É uma imagem impressionante, o que aconteceu ali?
Arruda: A foto é do início e desse momento que estou contando, mostra uma realidade. Acúmulo de serviço e exagero de demanda. Me orgulho da foto porque doeu. A foto é de 2015. Era por volta de umas 22h, minha equipe já tinha ido embora. Eu estava acabando de corrigir os processos e posicionei o celular e eu mesmo e tirei a foto. Achei que valia o registro daquilo tudo.
Prensa: Mas além dos problemas já relatados da Comarca, essa situação de tanto acúmulo de processos também corresponde a uma realidade da Justiça brasileira em nível geral?
Arruada: Também. A Justiça brasileira vai mal e decide mal porque decide muito. Se errei, a maior parte dos meus erros é porque e decidi demais. Sanear a Justiça brasileira passa pela desjudicialização. Temos no Brasil uma linha de pensamento que todo acesso gratuito à Justiça é benéfico e deve ser estimulado. Mas essa não é uma verdade em nenhum lugar do mundo. Muitos casos podem ser resolvidos de forma extrajudicial. Eu sempre tentei estimular acordos, mas no Brasil só funciona se as partes tiverem mais vantagem econômica que na sequência do processo judicial. Nos Estados Unidos todo mundo faz acordo porque a litigância lá fora é certa e cara. Aqui no Brasil não se sabe quando o processo vai acabar, ninguém respeita precedente nenhum, os tribunais superiores são muito vacilantes na fixação, no estabelecimento e no cumprimento de suas próprias decisões.
Prensa: Essa é a primeira entrevista que concede à imprensa?
Arruda: É a primeira entrevista. Eu cheguei a fazer comentários com a imprensa em outras circunstâncias, que não convém relembrar, quando cuidei da parte eleitoral falei com uma afiliada da Globo, e fui à rádio local, no Programa da Iva Maria.
Prensa: E como foi o trato com os advogados da cidade?
Arruda: Procurei ter uma vida reservada e uma postura imparcial, mas também nunca me recusei a falar com nenhum advogado. Todos que me procuraram eu recebi muito bem. Até por isso nunca tive necessidade de receber pedidos de colegas da magistratura, sempre falei na cara de quem perguntasse, que bastava me enviar o advogado aqui que eu respondia. Acho que essa notícia circula e entenderam minha maneira de trabalhar e, nesse caso, o Tribunal me respeitou muito.
Prensa: Por que não seguiu a carreira de médico, como seus pais?
Arruda: Primeiro descobri que a medicina não era a minha praia, saber isso já ajudou muito. Mas eu não tenho nenhum parente da área do direito, então fiz um teste vocacional, e isso ajudou bastante. Minha área era humanas, fiquei na dúvida entre economia e direito. Optei pelo direito.
Prensa: Vai voltar a Búzios como turista?
Arruda: Claro. Gosto muito de Búzios. Fui muito feliz aqui. Recebi um Título de Cidadão Buziano. A cidade mora em meu coração.