Por André Cansado
A esquerda global se encontra numa situação atípica. Nossas principais teorias pós-capitalistas falharam catastroficamente no século passado. Ao passo que o capitalismo global em sua fase terminal nos impõe impasses até mesmo sobre o destino da humanidade. Nem os mais entusiastas do capital como Elon Musk sabem como será o futuro do sistema sob a automação. Outros pontuam o financeirismo e a crise ecológica limitando a reprodução infinita do capital.
Aqueles que hoje citam o célebre jargão de Luxemburgo “socialismo ou barbárie” deveriam admitir que o socialismo foi uma barbárie por excelência. Não só os massacres e as arbitrariedades não podem ser ignorados mas também a ineficiência em de fato sobrepor o capitalismo como sistema moderno dominante. Não é que o socialismo tenha sido violento no sentido revolucionário radical, pelo contrário, ao apontar a sabotagem como principal fator da contrarrevolução os marxistas atestaram sua ineficiência em ter uma fórmula eficiente contra as elites. “A história me absolverá” dizia Fidel, e isso nada tem a ver com radicalismo. Os anarquistas nem ao menos reconhecem que não conseguiram um projeto substancialmente contra-hegemônico ao capitalismo. Da Comuna de Paris à Strandzha, as experiências anarquistas não conseguiram progresso como modelo pós-capitalista pois ou fracassaram em se organizar diante da sabotagem ou muitas das vezes viraram áreas de turismo para as classes médias pequeno-burguesas, como nos casos de Twin Oaks e Freetown Christiania.
O socialismo também não progrediu gradualmente ao comunismo, mas estabilizou classes dominantes em um sistema sem flexibilidade social. O rearranjo do socialismo para um capitalismo de mercado não é um desvio ou degeneração mas o resultado concreto das falhas inerentes à teoria marxista. Entre os trotskistas há o debate sobre se o socialismo do século passado foi capitalismo de estado ou estado operário degenerado. Todos os três termos deveriam funcionar juntos: o socialismo é um capitalismo de estado e por isso degenera o estado operário. Até mesmo os maiores empresários do mundo sabem da necessidade de controlar a atual crise com um capitalismo de estado global que, assim como nas experiências socialistas, poderia manter uma classe dominante de pé em um estado de emergência constante. Por isso Bill Gates se diz um grande socialista, as elites sabem melhor do que nós dos nossos problemas.
Não é que as nossas falhas devam ser interpretadas nas linhas da propaganda liberal, como a impossibilidade em essência de construir um sistema igualitário radical. Falhas são o que caracterizam o tornar-se ser do sujeito. É a nossa falha em nos tornarmos Um com o absoluto que nos possibilita olhar e analisar o absoluto e nós mesmos. Essa linha de raciocínio é a chave da leitura zizekiana do cristianismo. Cristo não se sacrifica na cruz para “pagar pelos nossos pecados” mas para demonstrar a limitação de Deus diante do homem. O Deus cristão não é o todo poderoso Um que vamos nos reconciliar pela morte mas a eterna divisão em Dois. Tal divisão é sempre presenciada pela subjetividade humana interiormente, nós nunca sabemos o que queremos. A Boa Nova cristã é nova no sentido de demonstrar que o exterior também se divide de tal maneira. Por isso o sacrifício de Cristo é a inversão do sacrifício de Isaque. Como bem sabia Charles Henry Mackintosh em sua leitura dos dois sacrifícios: Abraão abandona Isaque para admitir sua finitude humildemente ao absoluto ao passo que Deus abandona Cristo para admitir sua finitude humildemente ao sujeito. “Onde não há nada leia Eu Te Amo” como diz Zizek. No cristianismo não apenas nosso olhar para o Deus misterioso é importante como também o olhar de Deus sobre os nossos mistérios é da mesma importância. Não devemos nos esquecer que Deus se arrepende de sacrificar Isaque, como se ele não soubesse da determinação de Abraão em fazê-lo.
“Não resistais àquele que é iníquo; mas, a quem te esbofetear a face direita, oferece-lhe também a outra.” (Mateus 5:39) A lógica do perdão radical é a expressão dessa humildade dialética. Em nossa luta revolucionária não devemos nos ater aos nossos passos como o caminho absoluto da luta pós-capitalista. O que nos coloca ao mesmo lado é a certeza dos nossos fracassos, até mesmo em um pós-capitalismo concretizado. Lenin teve um vislumbre de como o absoluto se comporta. Chosmky estava certo ao dizer que Lenin em O Que Fazer? era um direitista. O problema da análise do teórico anarquista é esquecer a postura de Lenin em O Estado e a Revolução como o pico mais alto da utopia ultraesquerdista. Que também foi confrontada pelo revolucionário em Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Lenin sabia muito bem que não há como manter uma fórmula idealizada diante do absoluto. Esse é o motivo da sua dança revolucionária entre a libertação incondicional, a centralidade conservadora e o retorno ao início novamente. A questão do leninismo é a mesma do cristianismo, não apenas nós não sabemos o que a história quer mas também a história não sabe o que nós queremos. Em Nossa Revolução, um dos seus últimos textos, Lenin (diante do fracasso das revoluções democráticas e socialistas no Oriente e Ocidente respectivamente) tem um grande insight:
E se a completa desesperança da situação, ao estimular os esforços dos trabalhadores e camponeses por mais vezes, nos oferecer a oportunidade de criar os requisitos fundamentais de civilização de uma forma diferente dos países ocidentais? Isso alteraria as linhas gerais do desenvolvimento da história mundial? Isso aletraria as relações básicas entre as classes de todos os países que estão sendo, ou foram, jogados no curso geral da história mundial?[1]
Aqui devemos repetir de forma mais radical o gesto leninista de dar um passo atrás para dar dois à frente. Estamos diluídos em movimentos sociais sem direção clara e partidos de frente descentralizados. Para surgir uma nova Internacional dos Anticapitalistas devemos dar a outra face uns aos outros. Devemos todos admitir nossos fracassos para darmos juntos um passo atrás e assim analisarmos aonde nos encontramos hoje na luta anticapitalista. Mas como fazer isso? No século XIX tanto a Associação Internacional dos Trabalhadores quanto a Liga Comunista tinham trabalhadores engajados em uma espécie de centralismo democrático primitivo, incipiente e desorganizado. A investida inovadora de Lenin foi dar forma teórica a essa prática. E se voltássemos ao modelo global de centralismo democrático porém sem um absoluto revolucionário em conclusão? Afinal, Lenin incluiu o marxismo como norte desse centralismo, que acabou chamando de centralismo teórico. Tal centralidade é fundamental para manter a coesão do movimento revolucionário contra as elites globais. O problema do marxismo como esse norte é admitir a conclusão do absoluto, da sua própria maneira é claro. O centralismo teórico do século XXI precisa ser o absoluto em inconclusão, onde todos os anticapitalistas podem errar juntos.
[1]Pode ser encontrado no LINK
https://prensadebabel.com.br/index.php/2018/04/06/o-martelo-do-eterno-presente/