Por Mark Zussman
Algumas semanas atrás, eu escrevi um artigo nestas páginas virtuais sobre a saúde mental do presidente dos EUA. O título, um pouco mais econômico do que o título de hoje: “Pode ser que ele seja insano?”. Admito que esse título era sensacionalista. Até Trump não é insano no sentido mais comum da palavra. Ele não deteriorou até o ponto que estaria seguro só numa cela acolchoada. Ao que a gente saiba, ainda não está ouvindo vozes alucinatórias. Mas mal escrevi essa última frase, e já estou pensando em outros bem conhecidos sintomas da esquizofrenia que, em Trump, estão ganhando proporções visíveis a olho nu. Falas confusas e repetitivas. Obsessões. Dificuldades em concentrar-se. É até possível que ele acredita que a televisão está tentando controlar o seu pensamento. É dito que ele assiste televisão por até seis horas ao dia, principalmente as redes de notícias, e está aparentemente num estado permanente de raiva por causa das “notícias falsas” a seu respeito.
Mas, mesmo se o Trump não esteja esquizofrênico medicamente falando, a sua saúde mental deveria ser uma coisa preocupante não somente para norte-americanos mas para o mundo inteiro. Seria melhor se nenhuma pessoa mentalmente instável tivesse acesso a armas de fogo. Trump tem o seu dedo indicador num gatilho nuclear. E há amplas razões para pensar que, se ele não é exatamente insano no sentido de ter direito a uma dessas celas acolchoadas, ele sem dúvidas tem transtornos mentais bastante graves – e, desde a sua posse no mês de janeiro, sua saúde mental vem seguindo, aparentemente, um espiral descendente.
No meu artigo anterior sobre a saúde mental de Trump, citei três professoras de psiquiatria que, numa carta publicada no The New York Times, fizeram menção da sua “grandiosidade, impulsividade, hipersensibilidade a qualquer depreciação ou crítica, e uma incapacidade de distinguir entre a fantasia e a realidade.” Me referi também a um Manifesto Público chamado Terapeutas Cidadãos Contra o Trumpismo e assinado por mais de 3.800 profissionais do ramo.
Eu disse que, nos desabafos dos profissionais, a síndrome mais frequentemente apontada é o transtorno de personalidade narcisista. Mas muitos psiquiatras e psicologistas também usam o termo narcisismo maligno. Isto refere a uma mistura de narcisismo, do transtorno de personalidade antissocial, de agressão e de sadismo.
Desde o meu artigo anterior sobre o assunto, muitos outros psiquiatras e psicólogos entraram na discussão. Lance Dodes e Joseph Schachter, ambos psiquiatras distintos, e com o respaldo de 33 colegas, disseram, numa carta publicada no The Times, que, apesar da sua relutância em pronunciar sobre um indivíduo que não entrevistaram face a face, eles não podiam continuar a manter silêncio. “O que está em jogo é importante demais.” Aludiram aos distúrbios de raiva de Trump e de “falas e comportamentos que sugerem uma incapacidade profunda de sentir empatia.” Falaram das investidas dele contra jornalistas e cientista e especularam que, “conforme o seu mito pessoal de grandeza seja confirmado,” os ataques aumentariam. Concluíram: “Acreditamos que a grave instabilidade emocional indicada pelas falas e ações de Mr. Trump tornam-no incapaz de exercer a tarefa de presidente com segurança.”
Judith L. Herman e Robert Jay Lifton, mais dois psiquiatras altamente respeitados, falaram, em mais uma carta publicada no The Times, do “seu fracasso repetido em distinguir entre a realidade e a fantasia e das suas explosões de fúria quando as suas fantasias são desmentidas.” Mencionam também “as suas alegações paranóicas a respeito de conspirações.” Dizem que “as exigências da presidência vêm ampliando os seus comportamentos erráticos.”
Mas quero citar também dois comentários que enxergam a situação de um ângulo um pouco diferente. Allen Francis, o líder da força tarefa que escreveu a quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, disse, em mais uma carta publicada no The Times, que ele é que esboçou os critérios para uma diagnóstica de transtorno de personalidade narcisista, e Trump não cumpre esses critérios. “Pode ser que ele seja um narcisista da primeira, mas isso não significa que ele é um doente mental. Ele não experimenta o sofrimento e a debilitação essenciais para diagnosticar um transtorno mental. Ele causa sofrimento severo ao invés de experimentá-lo.” Acrescenta: “É uma injúria estigmatizante aos doentes mentais (que, em geral, são bem educados e bem intencionados) serem colocados no mesmo saco com Mr. Trump (que não é nem um nem outro).”
Nesse contexto, difícil não citar uma carta publicada na revista semanal The New Yorker por uma certa Jean M. Donnelly, que se identifica como psicóloga infantil. Ela lamenta a capa da revista do 23 janeiro, reproduzida aqui ao lado. A capa sugere, ela diz, “que o problema com Trump é que ele é criança. Isto é uma afronta a criançada. As crianças não são, inerentemente, nem narcisistas nem ignorantes nem cruéis nem vingativas. Elas tendem a aceitar outros seres humanos com mente e coração abertos, sem preconceito. Quem dera uma criança de cinco anos fosse o nosso presidente.”
Isto não é o fim da história.
Mais e mais observadores estão começando a especular que, narcisista ou não, esquizofrênico ou não, Trump está evidenciando os sinais iniciais da doença de Alzheimer – ou, como vocês, brasileiros, com o seu charme inesgotável, gostam de dizer, o alemão está batendo na porta dele. E não é somente uma outra interpretação da confusão nas falas. É, inclusive, a irritabilidade. As alterações de humor. Os distúrbios do sono. “Não sou dorminhoco. Gosto de três, quatro horas. Estou às voltas na cama,” ele diz. Pode ser que Trump nem consiga ler direto? O Brasil tem mais experiência com o analfabetismo e semi-analfabetismo adultos do que os EUA e com as astúcias que os analfabetos e os semi usam para mascararem suas deficiências. “Esqueci os meus óculos.” “As palavras são miudinhas demais.” Vocês talvez pudessem julgar melhor do que nós. Da meia dúzia de vídeos condenatórios e, francamente, bastante patéticos circulando pela Internet, eu recomendo, em particular, para quem gostaria de julgar por si só, uma depoimento, ano passado – na página https://goo.gl/FYzZNp, no YouTube – em que Trump, não podendo ler um documento, usa exatamente as desculpas que acabo de citar. Falta de óculos. Letras miudinhas. Mas recomendo só para quem aguenta ver um outro ser humano contorcer-se, agonizar e, finalmente, ficar humilhado. Os mais sensíveis, evitem.
Trump fará 71 anos no mês de junho. Nenhum presidente americano antes dele era tão velho no dia da sua primeira posse. Só Reagan quase o igualou. Os outros – nem perto. Durante a campanha primária, Trump castigou um dos seus adversários, Jeb Bush, irmão de George, por ser uma pessoa de “baixa energia”, e durante a campanha geral, alegou que Hillary não tinha “stamina” – uma palavra inglesa que se situa entre os sinônimos de energia e resistência. Trump, apesar da sua idade, dá a impressão de esbanjar energia. E, de certa maneira, esbanja energia, sim. Mas não é necessariamente uma energia saudável, ou invejável. Na verdade, é mais ou menos a energia de um bully. Manifesta-se com máximo realce quando ele se põe contra um adversário, ou adversários, mais civilizados do que ele. Os vândalos e os hunos tinham mais energia do que os romanos? Com certeza, tinham mais energia bruta.
Mas, graças a Trump, pelo menos nós, norte-americanos, aprendemos uma nova palavra. Bathmophobia. Pesquisei. Nenhuma surpresa, existe em português também. Batmofobia, obviamente. Em grego antigo, batmós, ou algo assim, era degrau. Bathmophobia, ou batmofobia, é o medo mórbido de degraus, escadas, declives de qualquer tipo. Quem agüenta mais uma boa dose de constrangimento pode assistir um vídeo – na página https://goo.gl/T0SkTH – em que Trump agarra a mão da primeira ministra britânica, Theresa May, para descer um degrau num pórtico da Casa Branca. Inicialmente, foi pensado que as mãos dadas eram uma afirmação da amizade inalienável entre dois países por muito tempo aliados, mas quem olha atentivamente verá que era outra coisa. Era um desses momentos em que um coroa comporta-se com a timidez de uma criancinha. A propósito, Fred Trump, o pai de Donald, sofreu por seis anos do mal de Alzheimer.
***
Depois do meu artigo do dia 3 de fevereiro sob o título “Pode ser que ele seja insano?”, escrevi um outro chamado “Estados Unidos: Impeachment . . . ou algum remédio, digamos, mais caseiro?” Sim, eu sei, mais uma vez sensacionalista. Mas nós não somos nem o The New York Times nem a Folha de São Paulo nem O Globo aqui em Búzios. Não temos a responsabilidade que esses outros jornais têm de exercer máxima cautela e medir as palavras. Graças principalmente a Marcelo Lartigue do saudoso jornal O Perú Molhado, nós, buzianos, temos um legado de um jornalismo satírico e zombeteiro aqui. E, apesar do título confessadamente sensacionalista a respeito de um impeachment eventual, não polemizei dentro do texto. Disse, no texto que, por enquanto, um impeachment não era provável.
Com certeza, Trump inspira ojeriza entre pessoas progressistas e também entre pessoas que simplesmente não gostam da fanfarronice dele ou do seu fluxo contínuo de insultos, ameaças e mentiras. Entre os seus correligionários Republicanos, Trump causa constrangimento. Nos bastidores, os olhos Republicanos estão revirando. As mãos Republicanas estão sendo retorcidas. Mas não é nenhum segredo que Trump ainda serve aos interesses dos Republicanos convencionais. Enquanto Trump garante a lealdade dos seus maiores fanáticos, os homens brancos, em muitos casos racistas, que o elegeram (e muitos dos quais nunca teriam votado num Republicano convencional da “classe” política), os Republicanos convencionais prosseguem o seu programa de sempre. Na medida do possível, estão tentando desmantelar os programas sociais que garantem que pelo menos as pessoas não morram aos milhões nas ruas. Estão acabando com as leis e os regulamentos que protegem o ambiente e o consumidor e impedem a liberdade total do capital. Baixarão os impostos pagos pelos mais ricos.
Como eu disse, um ato de impeachment está, provavelmente, longe.
Mas desde a década de 60 há, na Constituição americana, um mecanismo diabólico para os caciques políticos se desembaraçarem de um Presidente incômodo não por crimes, mas por incompetência. É a 25ª emenda, que fala assim: “Quando o Vice-Presidente e a maioria dos principais funcionários dos departamentos executivos, ou de outro órgão como o Congresso possa por lei designar, transmitir ao Presidente pró-tempore do Senado e ao Presidente da Câmara dos Deputados sua declaração por escrito de que o Presidente está impossibilitado de exercer os poderes e os deveres de seu cargo, o Vice-Presidente deverá assumir imediatamente os poderes e os deveres do cargo, como Presidente Interino.” (A tradução não é minha. Encontrei na Internet.)
Claro, a emenda não foi escrita expressamente para que os caciques (patifes?) políticos pudessem se desvencilhar de um Presidente meramente incômodo; foi escrita porque, na esteira do assassinato do Presidente John F. Kennedy, foi percebido que a Constituição deixa a questão de sucessão um pouco vaga em situações complicadas. Lembrem-se, a Constituição brasileira contém mais do que 70.000 palavras. A americana, muito mais enxuta, tinha nada mais do que 4.543 palavras, com todas as assinaturas, quando saiu do forno, e tem somente 7591 palavras mesmo agora com todas as 27 emendas.
A 25ª nunca foi invocada. Mas imaginem se fosse!
Tem pessoas que insistem que impeachment é golpe. Mas o impeachment é previsto nas constituições americana e brasileira igualmente. Em minha opinião humilde, o impeachment pode ser caracterizado como golpe só se os motivos alegados pelo ato de impeachment sejam bem diferentes dos verdadeiros motivos. Mas, mesmo nessa situação, pessoas razoáveis podem discordar. E vão discordar. Num passado recente, discordaram.
Num sentido estrito, a invocação da 25ª emenda também não seria golpe, se os motivos fossem indisputáveis. Se, por exemplo, o presidente se encontrasse em coma irreversível. Ou correndo pelado pelos corredores da Casa Branca. A Constituição americana autoriza. Mas o que significam essas palavras “impossibilitado de exercer os poderes e os deveres de seu cargo”. Impossibilitado? O que é impossibilitado? Imaginem que a 25ª emenda fosse invocada e o Presidente em exercício, neste caso o amigo Trump, não se encontrasse nem em coma nem correndo pelado aqui e acolá nem à beira da morte. Só manifestasse alguns sinais – no final das contas, ambíguos – de senilidade. Os gritos de golpe – golpe palaciano – seriam ensurdecedores. E isso, nos EUA, poderia acontecer. Um golpe palaciano.
Aqui no Brasil, chegou o momento em que o Congresso preferiu Temer a Dona Dilma. Seis mandatos na Câmara dos Deputados. Três vezes Presidente da Câmara. PMDB. Membro da família. Membro do clube. A Dilma não beneficiou dessas vantagens. Ela era uma pessoa de fora. Em inglês, an outsider. Servia . . .enquanto servia. E, quando não mais servia, não havia nem laços de amizade nem de lealdade para segurá-la.
Lá, nos EUA, o vice Mike Pence tem um perfil comparável ao de Temer. Seis mandatos na Câmara dos Representatives – os Deputados de lá. Depois, governador do estado de Indiana. Quanto ao Trump, Trump não é Dilma. De jeito nenhum. Ela era uma especialista em políticas públicas da esquerda; ele, um aventureiro populista. Mas ele é, como ela, um estranho e um intruso. Mais um outsider. Tem poucas amizades entre a classe política, goza de pouca lealdade pessoal. Quando não mais servir os interesses dos caciques, estará, como ela, vulnerável. Um pato sentado.
Não estou dizendo que um golpe palaciano vai acontecer daqui a duas ou três semanas nos EUA. Nem daqui a quatro ou cinco semanas. Mas, com um pouco mais tempo, será uma possibilidade, sim, e uma opção.