Em tempos de mudar de cidade no meio da pandemia, tento me adaptar ao novo normal. Fui na casa de uma amiga mas não entrei para tomar café, conversamos na esquina tentando manter aquela distância, sempre de máscara.
Mas de repente, não mais que de repente, surge o Silva (vamos chamá-lo assim para não expor a pessoa) vendendo paçocas de máscara às 22h.
Acho que umas 200 pessoas já me contaram a mesma história na rua. Ele pedia ajuda porque estava desempregado e o filho não tinha jantando ainda. Ele não ia voltar para casa enquanto não tivesse jantar. Minha amiga foi em casa pegar dinheiro para o jantar da casa do Silva. Não sei por que exatamente, mas acreditamos nele imediatamente.
Enquanto ela foi em casa, sentei no meio fio para conversar com Silva.
Negro, aparentava ser mais novo que eu, mas não muito. Visivelmente em estado de choque. Era motorista de ônibus e estava desempregado por causa da crise. Não conseguiu o auxílio emergencial. Não conseguiu auxílio do governo municipal. Evangélico, deu com a porta na cara das trocentas igrejas que existem em Macaé. Diz que pediu ajuda no mercado e as pessoas riram dele.
Acho que não fosse a sensibilidade da minha amiga, eu também o teria confundido Silva com aqueles caras que pedem dinheiro para alimentar os filhos mas na verdade… Bom, você sabe do que estou falando.
Silva disse que até os traficantes estão se organizando nas favelas para não deixar o povo passar fome. Mas o fato é que ele não mora na favela.
Falam tanto de um “Novo Normal”, mas o fato é que um pai de família desesperado para sustentar os filhos ainda é o mesmo normal.
Olhei o contraste entre hoje ser um dos dias mais felizes de 2020 para mim e provavelmente era um dos dias mais tristes na vida do Silva. Lembrei que já estive ali naquele lugar e me dei conta da quantidade de gente que está exatamente ali agora e estava também antes da pandemia.
Coincidentemente, parte do meu trabalho hoje foi justamente pesquisar como algumas cidades como Maricá-RJ conseguiram lidar com a crise, manter em 1% a taxa de desemprego durante a pandemia, manter os leitos com apenas 30% de ocupação com medidas simples. Com a Prefeitura estabelecendo parcerias com empresas, oferecendo benefícios para não haver demissões, buscando proteger os cidadãos não por caridade, mas porque isso ameniza a crise e as contas públicas.
Mas aí, vem o Silva para me trazer à realidade. De Macaé, de Petrópolis, de Juiz de Fora, do Brasil.
Nos tempos de jornalista policial, amigos da polícia militar, uma das classes mais desvalorizadas do RJ, me ensinaram um termo respeitoso que usariam para definir Silva: “Trabalhador”. Sim, é uma palavra simples, mas carregada de significados dos quais predomina o RESPEITO.
Mas que respeito estamos tendo com o Silva, TRABALHADOR, que se propôs a não voltar para casa sem jantar para seu filho? Que diabos de “Novo Normal” é este?
Que porcaria de mundo é esse em que o Estado e a Sociedade deixa um indivíduo como Silva desamparado, humilhado, desesperado.
Muitos criticam o isolamento justamente por ser “coisa de rico”. E quem não pode ficar isolado, como o Silva? Mas aí é que separamos o joio do trigo, ou melhor, a observação superficial do terraplanista do olhar científico. O ser humano é um animal social. Vivemos em sociedade porque somos mais fortes juntos. Pois o conceito de mais forte e o mais fraco em termos de raça humana é variável. Podemos ser fortes em um aspecto e fracos em outro. Vivendo em sociedade porque assim unimos nossas forças e compensamos nossas fraquezas.
Nestes aspecto, sim, estamos falhando como sociedade, estamos falhando como espécie. Silva me fez entender finalmente a carta deixada por Flavio Migliaccio. Realmente a humanidade não deu certo.
Clinton Davisson é jornalista e escritor, pós-graduado em educação e mestre em comunicação e doutorando da UFJF. Autor de quatro livros, entre eles, a premiado Hegemonia – O Herdeiro de Basten.