Por Mark Zussman
Quando eu estava sendo criado no Nordeste dos EUA nas décadas de 40 e 50 (do Século XX, é claro), minha mãe nunca usava a palavra mentira. Às vezes perguntava, a mim ou ao meu irmão, se por acaso um ou outro de nós estávamos contando um “fib” ou uma “untruth.” “Untruth” é fácil traduzir. É “inverdade”. “Fib” é um pouco mais difícil. “Mentirola” captura perfeitamente o significado, mas, se a minha mãe tivesse nascido e sido formada aqui e não lá, ela teria tido dificuldades com essa palavra – não com as duas últimas sílabas, totalmente inofensivas, mas com as duas primeiras sílabas. Essas duas sílabas – referenciando uma realidade tão nua e crua e feia – simplesmente não teriam passado pelos lábios dela – nunca.
Pode ser que ela não queria arriscar assassinar, no berço, a imaginação de um futuro Shakespeare ou Cervantes por um comprometimento intransigentemente severo com uma verdade despropositadamente absoluta. Mas era outra coisa também. Naquela época, as pessoas em nosso pedacinho da classe média alta, lá nos EUA, acreditavam que o mundo em geral era honorável e honesto – esse artículo de fé era, na verdade, um privilégio não somente da classe média alta mas de, sabe-se lá, talvez a metade ou mais da metade da população norte-americana, mesmo depois de duas décadas de mentiras colossais e escancaradas na Europa, assim como uma carnificina lá na Europa e mundo afora sem precedentes.
Com certeza, a minha mãe acreditava que os seus dois filhos eram, e para sempre seriam, pessoas honoráveis e honestas. Se houvesse alguma dúvida, ela não ia piorar o problema nos tratando como criminosos, ou seja, se ela nos tratasse como pessoas honoráveis e honestas (eu acho que é isso que ela pensava), nós seriamos pessoas honoráveis e honestas. Mentir era chulo. Mas reconhecer uma mentira ou denunciar uma mentira também era chulo.
Á propósito, minha mãe e meu pai não tinham problema nenhum com a mentira social – tipo, O seu jantar, Sra. Smith, estava uma delícia – que, antes de mais nada, obviamente, almejava proteger a autoestima do outro. E eu me lembro que o meu pai me disse uma vez, Eu não posso te dizer para nunca mentir. As mentiras são inevitáveis. Mas recomendo que você leve a sua vida de uma forma tal que não terá que mentir excessivamente.
Esse me parecia um muito bom conselho.
Mas, dado esse clima em que eu cresci e dado também que eu raramente era vítima de mentiras em minha vida pessoal e nunca, em minha vida pessoal, de mentiras que doeram muito ou custaram muito, eu cheguei à oitava década da minha vida pensando, quase tanto quanto a minha mãe, que o mundo, sim, era basicamente honorável e honesto e que a mentira imperava só nas margens da nossa sociedade – e entre pessoas com as quais eu não tinha muito contato. O mais absurdo, no meu caso, é que, por causa de tudo isso, eu desperdicei muito tempo ao longo das décadas não exatamente duvidando das acusações contra políticos tipo Paulo Maluf e Eduardo Cunha e Sergio Cabral, entre centenas, se não milhares, de outros, mas tentando descobrir uma migalha de verdade nas suas negações para que eu pudesse reconciliar, mais ou menos, os dois lados.
Então, por que só agora, incrivelmente, nas vésperas do meu 73º aniversário, eu estou finalmente me dando conta que nós vivemos num mundo em que as mentiras ameaçam engolir as últimas sobras da verdade que, de vez em quando, nós ainda avistamos, à distância e levemente iluminadas, na praça pública?
Por mais do que um motivo. Primeiro, a pessoa que acaba de ser eleito o 45º Presidente do meu país de origem – é verdade, eu nem gosto de digitar o nome dele – realizou uma campanha em que basicamente tudo que ele dizia era mentira, e já que ganhou ele continua mentindo a toda hora. Eu não quero detalhar as mentiras dele, mas eu posso constatar que a conceituada revista The Atlantic o caracteriza como “a reflexive liar.” E que tipo de mentiroso é um mentiroso “reflexive”? Em português, “reflexivo”, aparentemente a mesma palavra, significa ponderado, meditativo. Em inglês, “reflexive” significa o contrário de ponderado. “Reflexive” é por ação de reflexo – ou seja, automático, involuntário, sem refletir. Outras publicações, entre elas a The National Review, uma revista tradicionalmente Republicana e conservadora, o caracteriza como “um mentiroso compulsivo.” E outras publicações, inclusive o The Washington Post e a The New Yorker e Salon, o acusam de utilizar a técnica da grande mentira. Isto é a mentira, aperfeiçoada por Hitler e seus asseclas, que, apesar de ser manifestamente um despautério, se torna uma realidade, ou pelo menos uma hiper-realidade, por ser repetida incessantemente.
Como muitos de vocês sabem, o Oxford English Dictionary, o OED, o mais monumental compêndio da língua inglesa no mundo, e valioso sobre tudo pelos seus verbetes sobre a história das palavras, escolhe cada ano um neologismo do ano, e neste ano a palavra é post-truth, ou, em português, pós-verdade. Ancelmo Gois noticiou esse desdobramento, domingo passado, na sua coluna no Globo, num item sob o título “Pós-Verdade à Brasileira” – e a palavra foi reconhecida também, no mesmo fim de semana, num artigo na Veja sob o título “Rede de Mentiras” – a respeito das inverdades que circulam pela Internet à velocidade mais ou menos da luz. O Ancelmo entendeu a palavra perfeitamente. A pós-verdade não é simplesmente uma mentira ou um conjunto de mentiras. É uma realidade paralela que, graças à velocidade pela qual, sob as condições modernas, as bobagens e as mentiras e as grandes mentiras circulam, substitui por muitas pessoas – porque, em muitos casos, esta pós-verdade é reconfortante – a realidade dos fatos.
Eu não quero minimizar as mentiras dos nossos políticos brasileiros. Os políticos brasileiros são grandes mentirosos. Muitos deles mentem dia e noite, e mentem sem parar. Mas, de uma certa forma, eles também são amadores. Aqui no Brasil, o grande crime – o crime primordial e o crime que mais nos enlouquece – é a roubalheira. A mentira – a negação das acusações – existe para encobrir o crime primordial e principal e para o mentiroso esquivar-se do castigo devido. Se nós, incrédulos, nos perguntamos como uma pessoa – um Maluf, um Eduardo Cunha, um Renan – pode negar o que é perfeitamente visível, mesmo flagrado com a boca na botija, nós temos, felizmente, a teoria psicológica do sociopata para nos ajudar e acalmar. O sociopata, a psicologia ensina, é uma pessoa diferente de nós. É uma pessoa amoral que só pensa nos seus próprios interesses, que usa as pessoas para os seus próprios fins, que mente sem remorso ou compunção. Ou seja, uma grande parte da cl
asse política.
Trump – e agora digitei o nome – é diferente. Com certeza, Trump mente para encobrir os seus crimes e as suas indiscrições. Mente mesmo quando é pego com a boca na botija. E, por esquisito que pareça, os seus apoiadores e eleitores aparentemente adoram esta malandragem ou, se você prefere, esta sociopatologia. Qualquer coisa para plantar confusão no campo das ditas elites e dos liberais (no sentido norte-americano) arrogantes. Mas Trump não mente somente para encobrir crimes e indiscrições. Mente também para forjar um vínculo emocional com os seus fãs, que, como o desfecho da recente eleição revela perfeitamente, preferem a realidade (fajuta) dele à realidade dos fatos, e a adulação que ele recebe dos seus fãs alimenta, por sua vez, o narcisismo dele e a necessidade que ele tem de ser o centro das atenções. (Trump, sem dúvida, é sociopata, mas o narcisismo dele não tem fronteiras.)
Uma observação sobre, digamos, a pré-história da pós-verdade. Muitos norte-americanos sensatos pegaram uma primeira baforada do que estava em andamento em 1992 num artigo, na revista dominical do New York Times, em que um assessor não identificado do então Presidente Bush, aparentemente impaciente e frustrado pelas perguntas do autor do artigo, disse, com menosprezo, que “guys like you” – caras como você – pertencem ao que nós chamamos “the reality-based community” – a comunidade baseada na realidade. E, como se a realidade de fatos fosse somente um dos vários princípios em que a política pudesse ser baseada, esse assessor, posteriormente identificado como Karl Rove, a grande eminência parda de Bush, acrescentou, “Nós criamos a nossa própria realidade. Nós somos os atores da história, e vocês – todos vocês – ficarão só para estudar o que nós fazemos.”
Mas essa nossa pós-verdade – esta pós-verdade em que vivemos e de que nós não vamos nunca mais escapar – tem muitas modalidades, e já que estas observações estão se tornando, entre outras coisas, uma aula do inglês contemporâneo, quero mencionar um outro neologismo que nos orientará para um outro aspecto deste mundo de espelhos distorcidos. A palavra é truthiness. Esta palavra maravilhosa, e agora imprescindível, foi cunhada uma década atrás pelo brilhante comediante e apresentador de televisão Stephen Colbert, e, assim como post-truth, já foi noticiada no Brasil mas, infelizmente, pelo menos no contexto em que encontrei a palavra numa publicação brasileira, de uma forma que totalmente estragou a piada; é por isso que eu me lembro da ocasião. Foi a jornalista Adriana Carranca, numa das suas coluna sobre assuntos internacionais no Globo, que fez menção de truthiness mas, só para começar, ela nem transcreveu a palavra corretamente. Ela escreveu truthness. Vocês veem a diferença? E ela esclareceu que esse truthness era “aquilo que tem verdade.” Mas, se truthiness (com “i”) fosse truthness (sem “i”) e se truthiness significasse, então, aquilo que tem verdade, truthiness seria a mesma coisa que truth (a verdade) e a invenção não avançaria o nosso entendimento do mundo em nada.
Truthiness (com “i”) é outra coisa. Truthiness é aquilo que tem um vago aroma da verdade. Aquilo que contem verdade o suficiente – mas apenas – para acabar sendo confundido com a verdade. Ou seja, a forma atualizada da velha meia-verdade. Se quiséssemos inventar uma palavra em português com aproximadamente a sugestividade de truthiness, eu diria talvez veridicalidade. O que vocês acham? Para os anglófonos, truthy, a forma adjetival (truthiness sendo substantivo), se compara com truth (a verdade) como chocolaty (tendo traços de chocolate) compara com chocolate ou piney (tendo traços, ou aroma, de pinho ou pinheiro) com pine. Mas, de qualquer forma, truthiness, tanto quanto a mentira, é o inimigo da truth, ou seja, da verdade, e contribui a esse mundo de pós-verdade que deixa a pobre verídica verdade na poeira.
Com certeza, eu passei uma grande parte da minha vida numa bela ilusão. Mas era muito agradável. E agora? Felizardo, quem, como eu, tem pelo menos uma vida íntima livre de mentiras e pós-verdade e truthiness. E eu estou ficando velho. Que o mundo de mentiras e pós-verdade e truthiness cuide de si. Ou que vocês, os jovens, cuidem. Eu estou fora. Talvez à procura de algumas dessas verdades eternas.
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