Eu já escrevi aqui neste espaço que o contato com fontes primárias deveria ser incentivado desde os primeiros anos de graduação, para quem escolheu cursar História. Virtualmente, não é possível aprender História apenas ‘lendo livros”, ainda que isto seja muito importante.
Além disso, o contato com documentos permite que sejam confrontadas situações que muitas vezes, nos remetem a questões por nós vivenciadas no presente. Em geral, o historiador é sempre alertado sobre os perigos do anacronismo, ou seja, de projetar a sombra do Presente para o Passado que ele está analisando. Eu tenho uma opinião muito particular a respeito do anacronismo: ele é inevitável em nosso ofício, o máximo que podemos fazer quanto a isso é dosar este anacronismo.
Digo tudo isso para escrever sobre como os documentos que encontramos nos arquivos podem nos ajudar a compreender questões que vivenciamos no presente. Desta vez, remeto aos documentos do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. Em outro momento, escrevi que a criação do IML do Rio de Janeiro se deu em um contexto em que a Polícia do Rio de Janeiro passou pelo primeiro grande processo de modernização institucional, desde a sua criação no Império.
Essa modernização ocorreu em 1907, e tinha como premissa o fato de que o trabalho policial deveria ser guiado por critérios de cientificidade que começavam ser difundidos no Brasil. Em linhas gerais, era um momento em que a “Ciência” passou a ser considerada como uma ferramenta no combate à criminalidade. Os “cientistas do crime” tentaram vasculhar a conduta humana para responder a pergunta mais importante: afinal, o que motiva as pessoas a cometerem crimes?
Dentro do conjunto das condutas criminosas, os crimes da natureza sexual tiveram uma especial atenção dos especialistas do Instituto Médico Legal. O fazia com que um criminoso cometesse um delito de ordem sexual em público, por exemplo? Não faz uma semana, as redes sociais literalmente incendiaram com o caso do homem que ejaculou em uma mulher em um ônibus lotado, em pleno Centro de São Paulo. Nos documentos do Instituto Médico Legal existem muitos casos tão bizarros quanto este. Tudo isto servia de material para que médicos como Afrânio Peixoto e Leonídio Ribeiro construíssem modelos que explicassem a relação entre a “libido “ e o crime.
Para estes médicos, um elemento que ligaria estas duas coisas era a ‘propensão” de determinados grupos raciais a este tipo de comportamento criminoso. Na prática, eles acreditavam que havia uma ligação entre a ‘raça” de determinados criminosos e a “tara” de seu comportamento. Assim, negros e mulatos estavam alinhados no topo de uma lista de prováveis ‘tarados” e por isso, mais sujeitos a cometerem este tipo de crimes. Para eles, a miscigenação entre brancos e negros, produziu um sem número de indivíduos “degenerados” moral e fisicamente. Eram estes mestiços os estupradores, os masturbadores e última das infâmias, os “invertidos” sexuais.
Dentro deste esquema interpretativo, estabelecia-se uma ligação entre mestiçagem, degeneração moral e aparência física. Eram estes desviantes que não tinham o mínimo pudor em expor em público os seus piores vícios. Era isso que explicava o ‘trotoir’, a exibição dos corpos dos homossexuais, a audácia dos pervertidos sexuais e o meretrício da região do Canal do Mangue.
Os laudos do Instituto Médico Legal, ao serem reunidos por estes médicos serviam para construir um verdadeiro bestiário do gênero humano, uma coleção dos tipos mais estranhos, reunidos como se fossem espécimes de uma fauna rara. Eram por assim dizer, as ‘Flores do Mal” no jardim do Rio de Janeiro.
Na então capital da república, casos de atentado violento ao pudor gerados pela conduta destes “degenerados” ganhavam o espaço da mídia, da mesma maneira que incidentes como o de São Paulo de semana passada. Mas lá havia um detalhe importante, e que não permite que o historiador ceda à tentação do anacronismo. Naquela época, crimes desta ordem serviam para corroborar a tese de que a sua motivação mais profunda e inconfessável era não apenas a conjunção carnal, mas a união das raças.
Toda uma teoria sobre o sexo e o desejo foi construída tendo como alicerce o lugar da raça na formação social brasileira e não faltarão oportunidades para que eu escreva sobre isto nas próximas colunas. Por ora, eu apenas gostaria de registrar que atentados violentos ao pudor geravam no passado polêmicas tão violentas como as de hoje, mas o sexo ali era apenas pretexto para desejos muito mais profundos. Até breve.