Um lançamento de livro pode acontecer em uma feijoada regada a samba e álcool? Claro que pode, especialmente se o livro for o Humor à Lar Carte, escrito pelo chargista e cartunista Ykenga, onde o tema é justamente os produtos, personagens e acontecimentos em torno desta instituição tão legitimamente carioca, o bar. Foi nessa vibe que reencontrei Ykenga em Búzios, em um evento destes, uma feijoada preparada para os bacanas de que moram e frequentam o balneário. O que nós dois estávamos fazendo lá? Trabalhando, claro. A feijoada tinha como homenageado o saudoso Marcelo Lartigue, que por anos realizou uma feijoada parecida na cidade, e também estava na nossa roda o cronista Sandro Peixoto e outros do ramo. Chegamos a brincar que os únicos negros lá eram ele e o rapper Fábio Emecê (que estava a serviço do Prensa como repórter fotográfico, no entanto tirou poucas fotos. Bebemos bastante), exagero nosso.
Bonifácio Rodrigues de Mattos, o Ykenga, é desenhista técnico por formação, tentou a sorte na charge em 1978, em jornais de sindicatos e nunca mais voltou à antiga profissão (na entrevista revela outras formações que assumo que desconhecia). Ferino em suas análises da realidade brasileira (especialmente aquela em que vivem ele e outros negros), ele teve seu trabalho publicado em periódicos de renome aqui e fora do país.
E então, já sentado à mesa com ele, que também é um imortal da Academia Brasileira da Cachaça, a pedido de um jornal de Cabo Frio, fiz algumas perguntas com relação a Búzios e ao jornalista, fundador do satírico O Perú Molhado, Marcelo Lartigue. Era esse o interesse da publicação. Não quer dizer que não fosse interessante saber de sua ligação com a cidade e em especial ainda um pouco mais sobre o lendário, com quem tive a satisfação de trabalhar, Lartigue. Mas do papo que bati com o artista teve alguns momentos que não foram para a matéria encomendada, e que eu sempre quis publicar.
Vamos lá!
Qual a sua relação com Búzios?
Conheci Búzios quando moleque, com 14 ou 15 anos. Não tinha nada. A gente vinha para Cabo Frio e de lá tocava pra Búzios na base da molecagem. Íamos zoar. Tinha um camarada nosso que tinha um jipe. Íamos lá acampar e essas coisas de garoto. E mais tarde conheci o Marcelo Lartigue (fundador do O Perú Molhado) através do Jaguar. Trabalhávamos no Pasquim. Ele era muito amigo do Jaguar, depois quando eu trabalhava no A Notícia, a convite do Jaguar, fiquei mais próximo do Marcelo, que na época era fotografo da revista argentina La Semana e vendia umas fotos para o Globo. Ele morava em Santa Teresa e a gente bebia umas cachaças juntos ali pela Riachuelo, e até em Santa Tereza mesmo. Quando ele descobriu que eu desenhava pra A Notícia e o Dia, na época esses jornais eram do mesmo grupo, ele me convidou pra colaborar com O Perú Molhado, que ele mantinha paralelo ao trabalho dele nos outros jornais. Aí nasceu nossa amizade. Eu vinha pra feijoada, o bloco do São Perú, e eu criei as fantasias e o bastão do bloco. Foi eu que criei. Ele sempre me chamava pros eventos. Era aquela zueira toda. Mas tem o pessoal da Rasa, o Valmir da Rasa, a Vó Regina, e eu descobri que somos parentes. Parentes distantes, mas somos parentes. Porque a criolada quando começa a conversar descobre que é parente (risos). Eu gosto muito de Búzios. Eu me aposentando eu vou ver se descolo um barraquinho pra mim aqui. Gosto muito qui.
Você é considerado o poeta do humor. Poesia e humor no Brasil de hoje são artigos de luxo?
Esse negócio de poeta do humor eu não sei se sou. Mas eu comecei a fazer cartum e charge por pura necessidade mesmo. Eu era militante sindical, depois fui militante do Movimento Negro Unificado (MNU) essa coisa toda. E me formei em sociologia, ciências Sociais e Políticas, e fui trabalhar com o Betinho, que era irmão do Henfil. Então conheci o Henfil e ele me levou para o Pasquim. O Betinho* e o Henfil** tinham criado o Instituto Brasileiro de Analises Sociais e Econômicas e eles faziam muitos trabalhos comunitários em favelas. E criamos um setor de comunicação comunitária do qual era um dos editores. Editava o jornal Favelão que falava sobre o abuso de poder da polícia, saneamento, educação. Promovíamos oficinas de redação para jornal, fotografia e ilustração para jornais nas favelas. Vidigal, Cantagalo, Rocinha, Vila Cruzeira… em cada favela dessas tínhamos uma subeditora. A gente recolhia ao material de todas essas comunidades e fazíamos o Favelão com um apanhado de todas as favelas do Rio de Janeiro.
Foi depois disso que você foi chamado para Pasquim?
Daí fui chamado para o Pasquim e lá cheguei a ter uma página chamada “ Correio Nagô”, onde eu noticiava assuntos sobre questões relacionadas ao racismo e ao movimento negro e essa coisa toda.
Mas, então você rechaça essa alcunha de poeta do humor?
Mas a poesia é sensibilidade pura, tenho muitos amigos poetas. Não acredito que a poesia seja um artigo de luxo. Por exemplo, vejo que alguns raps são obras poéticas. Não todos, mas alguns são obras incríveis. O hino do Brasil, por exemplo, não acho que representa o Brasil. Essa linguagem ufanista, essas imagens parnasianas. Os hinos do mundo falam de luta, de guerra, conquista, contra opressão.
Interessante isso sobre o nosso hino. Ao que você acha que se deve isso?
O hino brasileiro foi feito pela burguesia. Esses poetas parnasianos criaram esse hino e o Brasil nunca foi um lugar pacifico. O Brasil não é pacifico o brasileiro não é pacifico. Tem uma charge minha que diz que o Brasil pode até não ter tido derreamentos de sangue, no sentido de guerras grandiosas, heroicas. Mas há então uma hemorragia interna. Que é muito pior. Se o sangue jorra ainda dá pra salvar, mas a hemorragia é pior. Os presídios cheios, guerra de quadrilhas nos presídios do Ceará, do Rio. Chacina na Rocinha… Se isso não é violência minha vó se chama bicicleta. Por isso que esse hino não é representativo.
O politicamente correto atrapalha o humor?
Ah isso sempre atrapalha o humor. É claro que atrapalha. O que é politicamente correto em um lugar onde não se respeita nada? Onde as autoridades não respeitam o povo que os elege? Na verdade no Brasil ninguém respeita ninguém. Não há uma concepção nativista. Não gosto de ficar citanda a Europa, porque é outra história. Mas olha que os caras brigam pelas coisas deles. Talvez até por terem enfrentado muitas guerras, pelo inverno rígido onde tem que ter data certa para plantar, essas coisas acabam valorizando mais. Aqui você vai comprar 50 gramas de carne vão te olhar com desdém. Por que? E a cultura da exploração, da patroa que explora a empregada doméstica. Por isso desconfio do politicamente correto.
Mas então você acredita que vale tudo por uma boa piada?
Não gostar do politicamente correto não quer dizer que eu ache que vale tudo por uma boa piada. Porque aí entra uma questão de caráter.
Como assim?
O Millor Fernandes, grande mestre, eu aprendi muito com ele. Ia muito ao estúdio dele em Ipanema beber uns whiskies com ele. E quando ele falava eu só escutava. Ele dizia que fazer piada com o que já é engraçado não tem graça. Entendeu?
Sim, sim. Tem a ver com esse lance que se convencionou dizer sobre fazer piada com o opressor e não com o oprimido, né?
Isso. O humorista e o chargista é um operário que tem como trabalho ficar contra o Poder, contra os opressores. O meu trabalho é sempre em cima do opressor, não faço piada com o oprimido. Em tudo temos que ter uma ética, faz parte do caráter humano. Você não vai chutar um mendigo. O cara tá na calçada jogado, já visto como um lixo humano, no degrau mais baixo da sociedade e você ainda vai chutar ele? Vai fazer piada com ele? É isso aí.