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O Ariano foi sempre visto pelos demais como uma pessoa especial. E especial é, claro, um jeito agradável e educado de falar esquisito.

Chama a atenção o seu gosto pela filosofia kantiana, às vezes chegando perto do obsessivo-compulsivo, a sua real obsessão pelos dinossauros, especialmente por uma espécie de velociraptor que tinha sido descoberta recentemente na Mongólia, no deserto de Gobi.

Também são notórias as suas coleções de borboletas, todas elas mortas, logicamente, e o seu aquário, que um dia chegou a ser tão grande  que teve de comprar uma piscina de plástico para abrigar um enorme número de peixes de diversos tamanhos e cores.

O que, sim, ninguém conseguiria ver, porque mesmo sendo considerado um esquisitão, não era um idiota e sabia esconder direito o que tinha de ser escondido, era a sua imensa coleção de bonecas dos anos trinta inspiradas na então atriz infantil Shirley Temple, assim também os vários vestidos que amava usar por horas enquanto servia o chá às suas amigas de porcelana.

Entre seus melhores amigos, um deles morava em um apartamento do lado da sua casa, numa pequena cidade no estado brasileiro do Rio Grande do Sul.

Ilustração do blog UrbanSketchers, intitulada a Matança do Porco no Alentejo

Abílio, assim era seu nome, era um homem de meia idade, obeso, de cabelos cacheados e tão louros que pareciam brancos. A pele do seu rosto era rosada e às suas costas, por causa da sua aparência volumosa, os vizinhos costumavam chamá-lo de «O tetas».

Ambos dois eram solteiros, e a maioria dos seus conhecidos pensava que eram um casal homoafetivo. A realidade era que talvez o Abílio poderia sê-lo, os boatos sempre falaram isso, mesmo desde a sua infância, porém o Ariano nunca tinha sentido atração física por pessoa nenhuma, tendo entre as suas pernas algo ou não.

E o que chama mais a atenção de tudo, é o mais íntimo e profundo dos sonhos do Ariano. Não era dirigir o melhor dos carros numa estrada da Costa Amalfitana, nem possuir a mais bonita e sensual das coelhinhas da Playboy (lembremos que nunca teve interesse em ter contatos desse estilo), nem ser o dono nem de uma mansão enorme nem de uma fortuna escondida em um paraíso fiscal nas Ilhas Seicheles. Não, não e uma lista interminável de nãos. O seu sonho, nesse sentido, era bem mais barato e simples. Era uma questão da ordem da culinária, gastronómica.

O Ariano sempre deve um desejo tão ardente que parecia que a sua alma queimava com um fogo que deixaria o Hefesto com inveja. O seu sonho era o de provar o sabor da carne humana.

E foi em mais uma Semana Santa, enquanto ele se encontrava relaxando na sua rede, bebendo um cappuccino, e relendo pela enésima vez o seu favorito de todos os tempos, Crítica da razão pura, quando viu ele descendo pelas escadas. O Abílio.

Rápido em cálculo mental e sempre sagaz em exatas, o Ariano viu a oportunidade da sua vida surgir.

A cidade era pequeníssima, e se encontrava vazia. A maioria dos seus habitantes ia passar o final de semana em cidades maiores. O quarteirão onde a sua casa e a do seu vizinho e amigo se encontravam era particularmente o mais afastado de todos os da cidade, a cem metros da praia.

Foi alí que o viu descer, degrau por degrau. Cento e quarenta quilos de carne e banha que bem poderia congelar e ter para comer por vários dias caso o sabor fosse tão bom quanto imaginava que seria. Pela sua cabeça se passaram milhares de receitas com as diferentes partes do corpo. Desde o fígado, que cozinharia com cebola, às nádegas, que já havia as imaginado assadas com ameixas e maçãs, até as pernas, que as cozinharia com batatas doces e molho barbecue.

“Abílio, meu irmão, tenho de te devolver a pá que você emprestou pra mim semana passada!”

O desgraçado sorriu. Sempre teve pudor de pedir de volta o  que a ele pertencia, e que tinha sido pago com o suor da sua testa e com tempo que nunca retornaria. Se tivesse sido mais inteligente, poderia ter pedido que devolvesse a ele o seu pendrive com a discografia completa da Gal Costa e da Maria Bethânia, um colar de esmeraldas que pertenceu à sua avó e que seu amigo vestia orgulhoso nos chás com as suas inanimadas amigas de porcelana, vários imãs de geladeira e, especialmente dúzias de recipientes plásticos que achavam-se na sua cozinha.

Ainda com um sorriso de orelha a orelha, a exatos dois centímetros da escada, o viu subir velozmente com a mesma pá que não usara desde que seu amigo pegou emprestado há dois meses, e não há uma semana como tinha dito.

“Muito obrigado, Abílio querido!”

O abraçou e desejou-lhe feliz páscoa.

“Não está a comer carne, não é? Você bem sabe que é pecado!”

O obeso infeliz negou com a cabeça e perguntou-lhe o quê ele faria naquele domingo de ressurreição, que seria em dois dias.

“Comer que nem um cavalo” respondeu olhando diretamente aos seus olhos azuis como o céu, quase como uma criança faminta que olha uma almôndega tão redonda quanto a sua barriga.

Dando um passo, se pondo às costas dele; com a ajuda da força da gravidade e com um leve movimento das suas mãos, o fez perder o equilíbrio e rolar as escadas. Em três segundos, tempo em que o viu chegar no chão, esboçou um ínfimo sorriso de canto de boca. O barulho que fez quando terminou de rolar foi idêntico ao que ouviu quando escutou aquela vez que caiu um leitão que o seu pai abateu pro natal. Depois disso tudo -ele pensou- uma das regras do cristianismo era comer o corpo e beber o sangue de quem foi o Filho de Deus, quem por sinal nos chamou de irmãos.

Se deliciou e começou a pensar na janta dessa noite.

O Ariano poderia ser o mais estranho dos estranhos, porém nunca ninguém poderia falar, que não era o homem mais feliz sobre a face da terra.

Por Javier Ulla – Psicólogo, LGBT orgulhoso, professor de idiomas estrangeiros, viciado em chimarrão e cerveja, amante das línguas e dos thrillers psicológicos.


Saiba um pouco mais do autor 

Naseu em junho de 1989, em uma cidade do noroeste argentino chamada Santiago del Estero, ano que transformou a história do mundo por causa das Revoluções que derrubaram os Estados Comunistas do Bloco do Leste, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Cortina de Ferro na Europa.
Esse ano também nasceu Taylor Swift e segundo a astrologia chinesa foi o ano da serpente.
Muita coincidência para um ano só, o que só pode ter como resultado o nascimento de quem escreve hoje essas palavras.
Vinte e cinco anos depois mudou-se à região dos Lagos no Rio de Janeiro, Brasil, para viver experiências novas e largar a sua antiga vida no sertão argentino de peronismo ou neoliberalismo, de Pátria ou corporações.

Noticiário das Caravelas

Coluna da Angela

Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

Coluna Clinton Davison

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