‘Tava dromindo candongueiro me chamô. Tava dromindo candonguero me chamô.
Acorda povo, cativero já cabô.
Lá no cruzero tem um boi que sabe lê!
Ó bota corda nele, traz aqui que eu quero vê. ‘
Joquina e sua maninha gostavam tanto daquela cantoria do povo as altas horas da noite quente lá nos mato da Raza. O ano era o de 1960, tinha tumulto acontecendo lá na capital, no Rio de Janero. Era muito longe dali, Joquina e Maninha nem sabia disso. Dava sono em Maninha, e mãe levava ela pra dentro da casinha de barro e cantoria seguia noite à dentro, Joquina não dormia. Joquina tinha destino pra chefiar. A alegria daquela noite outra cantiga explicava.
“Viva a casa de farinha! Viva o homem farinheiro! Mandioca plantada em maio, farinha feita em janero…”
Começo do ano, verão, mas nem ninguém ligava pra isso. O que sabia era que era época de ir vender farinha pra longe … Lá no Búzios tem quem compra. Tomara vender lá tudo, pra não ter de ir até o Cabo Frio, pai dizia pra mãe. Joquina ouvia e prestava atenção. Igual coruja. Maninha brincava com boneca de sabugo de milho.
Casa daquela época não tinha fechadura, confiança nos irmão era grande. O trinco da porta era um prego e barbante, e só fechava por fora. Era pra quando tivesse viagem pra longe e a casa ficava sozinha, coisa que nunca acontecia. Joquina, ao menos, não se lembra de ter passeado pra longe da Raza quando erezinho.
Mãe tava preocupada que aquela noite a lua era cheia. Mãe tinha medo de lobisome. Pai disse pra não ir longe enquanto estivesse fora, mas pra não ficar assustando as criança. Mas era melhor fica por ali, perto dos vizinho. O home que virava lobisome morava pra mais afastado, pra depois da praia gorda já quase lá no mangue, pro lados da praia de Seu Pompeu. Contavam histórias de que ele virava bicho medonho, virado num porco peludo e cheio de dente… comia o pescoço das galinha, rolava na lama com os porco.
Mas o tal home que virava lobisome, de dia era igual, normal. Era sujeito calado. Não faz mal pra ninguém, pai dizia. Outros home concordavam com pai. As mulé sempre calada.
Ele da pouca vez que veio pra perto do povo queria fazer troca. Uns home gozavam dele, ele baixava os olho, quieto. Olhava de baixo, igual cachorro que tem medo de apanhar porque mexeu na comida.
Pai tava ainda pra longe, mãe tava ocupada com a roupa. Joquina tinha que cuidar de vó. Vai Maninha na casa de farinha, mãe pediu com receio. Mas era dia, e todo mundo se conhecia naquele lugar.
Maninha foi pelos caminhos, hora tranquila, hora temia barulho. Contornando pela trilha, campeou a praia. Os home já tinham ido cedo pra pegar a pescada que tinha roncado lá no fundo. Tava deserto.
Muitas horas depois, mãe tava aflita. Cade Maninha? Só mulé no quilombo, ai meu Deus! Pai mais outros home chegaram em seguida, finalmente. Mas nem deu tempo de sair atrás. Maninha chegou virada em desespero, vestidinho que gostava todo rasgado, chorava muito. Soluçava. Só tinha pavor no olho. Joquina chorou de preocupação com a irmã.
Do pouco que conseguiu contar se entendeu que foi atacada pelo lobisome. Os home se olharam. Mãe gritava de dor, mãe gritava muito. Muito tempo depois Joquina entendeu que era raiva e ódio também que fazia mãe gritar. Lobisome pegou maninha e não era nem de noite ainda.
Maninha passou dois dias parou de chorar, mas foi ficando amuada, quase não falava, e quando falava era pra dentro. Não brincava. Maninha tava definhando. Joquina via mãe brigar com pai. Que tinha que fazer alguma coisa. Mãe quer matar lobisome. Mas como se mata? E o perigo da noite? Pai questionava, ninguém mais ligava. Mas o bicho pegou maninha de dia. Mãe se revoltava com pai.
Foi vó que disse que uma vez mãe dela contou que num lugar longe, muito longe da Raza. Lá pra depois dos morros azuis por de trás da mata, longe mesmo, na fazenda Papucaia, parente deles, ainda cativos, matou um bicho desses com uma foice nova, amolada, daquelas que brilha no sol, aço novo. Pai tinha uma assim. Pegou de troca por feijão no Cabo Frio numa das idas pra lá.
Mãe não falou com ninguém. Joquina viu quando ela saiu com dia ainda clareando, céu amarelo. Joquina não disse nada, abraçou maninha que era agora pele e osso. Só comia se desse na boca.
Mãe chegou no buraco onde o bicho morava. Visto por traz era gente ainda. Quando viu mãe cresceu o olho, mexeu nas calças, ficou valente. Diferente de como era perto dos home, que era frouxo. Chegou perto de mãe já virando bicho, queria rasgá roupa dela. Mas levou o golpe de foice de lado, enviesado, no braço, como mãe fazia bem quando cortava alguma touceira pra preparar a terra.
O porco começou a guinchar! Mãe foi certeira no meio do peito. O aço novo ficou melado de vermelho. O bicho tava morto. Quando pai e outros home chegaram no rastro de mãe era o sujeito destransformado já. Só um home magro e feio deitado morto na poça de sangue dele. Uma brecha aberta no peito.
Mãe ficou respeitada porque matou um lobisome, os homens não falavam do assunto mais. Deram sumiço no corpo. As mulé toda pegaram mais estima por mãe. Joquina via tudo, prestava atenção igual curuja. Era o jeito dela. Maninha nunca mais foi igual.
Nos anos de 1990, Raza já morava mais gente, até gente nova vindo de outros lugar. Mas ainda tinha bem bastante mato, rua de chão, barro vermelho. Um ônibus que passava de quando e vez levantava poeira vermelha que fazia as casa da beirada da rua ter sempre meia parede avermelhada. Mãe ainda era viva, mas agora era chamada de vó. Maninha teve vida curta, morreu de tristeza. Pai também morreu, infarto ainda novo, mas já parecia velho que só. Joquina era líder mesmo, destino dela.
Uma menina do arredor chegou corrida, botando os bofe pra fora. Vó conhecia aquela cara, Joquina também. Sabia que era coisa de mulé que encontrou com bicho desgraçado. Menina falava em soluço só. Vestido rasgado, muito ranhado no braço. Home foram assuntá, Joquina não deixou ninguém sair. Vó apontou foice nova no quintal e explicou como se matava o bicho. Os home foram. Dois polícia chegou pouco depois no quintal. Chegaram grande, mas Joquina levantou-se da costura e foi falar com eles. Contou a história desde a chegada da menina. Um polícia quis botar banca, cumprir a lei do papel. O outro polícia pousou a mão no ombro do amigo: – É assim que se trata essas coisas, isso não era homem, é bicho. Os polícia se foram e não se tocou mais no assunto.
Conto #1
A lenda do surfista empalado de Geribá #1
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