Uma parada de ônibus, a cama dividida com o marido, o quarto de um amigo ou a saída de templos religiosos. Não há espaço seguro para ser mulher. Qualquer lugar pode se transformar no cenário do pior pesadelo feminino, o estupro.
No período em que se celebra o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher (25 de novembro) e da campanha mundial “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, que terminou no dia 10 de dezembro, o Prensa de Babel ouviu duas vítimas de estupro e assédio, uma pesquisadora da área de Serviço Social, um delegado da Polícia Civil e alunos da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Rio das Ostras.
Ser estuprada é um dos grandes temores, senão o maior deles, de gente de todas as crenças, cores e classes sociais. Entre as mulheres, isso é ainda mais evidente. Um pesquisa do Instituto Datafolha apontou que 85% das brasileiras entrevistadas tinham medo de sofrer esse tipo de violação.
Nas cidades da Região dos Lagos e Norte Fluminense esse medo não é menor nem o único. O medo do abuso, da agressão e do homicídio também andam lado a lado. De acordo com o Dossiê Mulher 2017, criado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, na Áreas Integradas de Segurança Pública 25 (AISP 25) no ano de 2016, 31 mulheres foram vítimas de homicídio doloso.
A AISP 25 compreende as cidades de Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande, Saquarema e São Pedro da Aldeia.
Já na AISP 32, que engloba os municípios de Casimiro de Abreu, Macaé, Rio das Ostras, Conceição de Macabu, Quissamã e Carapebus, 16 mulheres foram vítimas dessa mesma modalidade de crime.
De acordo com uma pesquisa feita pela professora da UFF de Rio das Ostras e doutora em Serviço Social, Katia Marro, que contou com a colaboração de Rosana Santos e Silva, estudante de Serviço Social, as 31 vítimas de homicídio doloso da AISP 25 representam 7,8% do total de vítimas de todo estado do Rio de Janeiro (396). A AISP 32, com 16 vítimas, representa 4% do total.
“O homicídio doloso com vítimas do sexo feminino apresenta tendência de crescimento nos últimos cinco anos (aumento de 34% nos assassinatos de mulheres no estado), sendo que o ano de 2014 se destacou como o de maior número de vítimas (420 mulheres)”, analisa Katia Marro a partir do Dossiê Mulher do ISP-RJ.
Em compensação, o número de lesões corporais nessas áreas tem reduzido. Na área da AISP 25 foram contabilizadas em 2016 1.844 vítimas, contra 2.109 do ano de 2015. Na AISP 32 é marcado 1.219 crimes em 2016, contra 1.461 do ano de 2015. Porém, pela análise da pesquisadora esse número não é necessariamente um dado positivo.
“Os dados mostram que o número de lesões corporais tem reduzido, mas homicídios tem crescido. O que isso pode significar? Que os homens tem ferido ‘melhor’ as mulheres, levando-as à morte. Que em vez de estupros e lesões corporais temos homicídios e, por isso, uma possível progressão da violência”, explica a doutora em Serviço Social.
A questão dos estupros também é preocupante. Em 2016, as cidades da Aisp 25 tiveram 267 casos. Já na Aisp 32 o número chegou a 146. Se os números anteriores forem relacionados ao total de estupros registrados no Estado (4.013 vítimas), a Aisp 25 representa 6,7% e a Aisp 32 representa 3,6% desse total (somando ambos, temos que 11 % do total dos estupros registrados no estado, acontecem na região). A elaboração desses dados são da professora Katia Marro, com a colaboração da estudante Rosana Santos e Silva, a partir do Dossiê Mulher do ISP-RJ.
Se os dados foram observados cidade a cidade, os números de vítimas de estupro se apresentam da seguinte forma: Rio das Ostras teve 72 casos de estupro registrados em 2016; e 46, até agosto de 2017. Macaé contabilizou 70 vítimas, em 2016; e 45, até agosto de 2017. Já em Búzios houveram 13 casos, em 2016; e 9, até agosto de 2017.
Em São Pedro da Aldeia aconteceram 27 casos de estupro, em 2016; e 31, até agosto de 2017. Em Cabo Frio, foram contabilizadas 108 vítimas em 2016; e 47, até agosto de 2017. Na cidade de Casimiro de Abreu houveram 11 estupros, em 2016 e 11, até agosto de 2017.
De acordo com a doutora em Serviço Social e pesquisadora, Katia Marro, na maioria dos municípios, os números de estupros registrados se mantiveram constantes ou aumentaram nos últimos cinco anos, marcando momentos críticos em 2014 para as cidades de Cabo Frio; Macaé e Rio das Ostras.
“Na maior parte dos municípios da região, a projeção dos dados de 2017 superam os dados de 2016, por exemplo no caso de Búzios, Casimiro de Abreu, Macaé, Rio das Ostras e São Pedro da Aldeia. Porém, em Rio das Ostras se apresenta uma situação crítica, ao demonstrar números similares a Cabo Frio e Macaé, sendo que a sua população é bem menor. A realidade de Saquarema também parece crítica pelo mesmo motivo,” comenta.
De acordo com o último senso de 2010 do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), Rio das Ostras possui 105.676 habitantes. Já Cabo Frio e Macaé possuem, respectivamente, 186.227 e 206.728 munícipes. Saquarema possui 74.234 habitantes.
Em 2013, o número total de estupros registrados no país foi 50.320 casos. Entretanto, com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), estima-se que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil (1a cada 11 minutos). O Sinan é uma base de dados gerenciada pelo Ministério da Saúde e alimentado pela notificação compulsória profissional de situações de violência, inclusive o estupro.
Dessas 527 mil pessoas estupradas apenas de 10 a 15% chegam ao conhecimento da polícia. Das quais 89% das vítimas seriam do sexo feminino, e na maioria (70%) são crianças e adolescentes. Esses dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2013.
Para concluir, a professora e doutora em Serviço Social comenta que a falta de infraestrutura pública está diretamente relacionada aos números elevados mostrados.
“Transporte precário, falta de iluminação pública, ausência de políticas de segurança pública de qualidade são facilitadores. Mas a falta de organismos de políticas públicas também está profundamente relacionado. Secretárias e coordenadorias municipais são fundamentais para garantir políticas públicas permanentes e de qualidade para enfrentar e prevenir a violência de gênero”, conclui Katia Marro.
Vítimas da violência de gênero
As estatísticas são importantes, mas, ocasionalmente, se deve dar espaço as pessoas que precisam de voz. Por conta disso, o Prensa de Babel procurou ouvir mulheres da região que já passaram por situações de abuso, estupro ou assédio sexual.
E, fazendo parte das estatísticas de mulheres que foram estupradas em Rio das Ostras está Carla*, 22 anos, moradora do bairro Bela Vista, (*nome fictício para preservar a identidade da vítima). Atualmente, o receio de ser abusada e agredida acompanha a estudante universitária toda vez que sai de casa. Ela conta que o estupro aconteceu quando voltava da universidade a noite.
“Estava caminhando pra minha casa que fica longe do ponto de ônibus quando dois caras com um carro para me pedir informação. Não me aproximei do carro, mas um deles saiu pra supostamente me mostrar a localização no celular e não desconfiei da ação. Ele me empurrou pra dentro do carro e o outro cara arrancou. Gritei me debati tanto que eles me jogaram do carro perto da Lagoa de Iriry depois de rasgar a minha blusa. Já faz dois anos isso. Não consigo sair de casa sozinha depois que anoitece. Tudo isso mexe com a nossa cabeça. É horrível.”, narra a estudante.
Carla* nunca denunciou o caso, nem fez um boletim de ocorrência. Essa situação é similar à de Mariana*, 19 anos, moradora do bairro Cidade Praiana, que relata um caso de assédio sexual que aconteceu em uma manhã há cerca de seis meses atrás.
“Era umas 9h da manhã. Minha família acordou tarde e eu estava indo a pé comprar pão na padaria que fica a umas 6 quadras da minha casa. Um cara me acompanhou de moto nas últimas quadras falando vários absurdos pra mim. Não tive reação na hora. Fiquei com medo que ele fosse me agredir se eu falasse qualquer coisa. Quando cheguei na esquina da padaria ele acelerou a moto e parou de me seguir. Não consegui sair da padaria. Tive que ligar para o meu pai vir me buscar porque fiquei com medo de sair dali e o cara voltar”, lamenta Mariana*.
Avaliação da Polícia Civil
De acordo com o delegado titular da 128ª Delegacia de Polícia de Rio das Ostras, Franquis Nepomuceno, de janeiro até outubro de 2017, houveram 23 estupros no município. Os números foram fornecidos pela delegacia da cidade.
“Cerca de metade desse número (ou seja, aproximadamente 11 mulheres) foram estupradas por pessoas dentro da família. 20% foram estupros de vulneráveis (crianças ou adolescentes). Cinco mulheres foram abusadas por ex-companheiros. Apenas 3 casos de estupro tiveram como autor um desconhecido”, explica o delegado.
O delegado Franquis acredita que os números de casos de estupro tem crescido também por conta do maior número de denúncias. “Ainda existe uma subnotificação, mas com o passar dos anos o número de mulheres que denuncia casos de abuso e estupro tem aumentado gradativamente”, comenta o delegado titular de Rio das Ostras.
Grupos mobilizados conta violência de gênero
Em Rio das Ostras existem vários coletivos e grupos que tem pautas contra o estupro e outras diversas formas de violência de gênero. O Coletivo Construção e o grupo ‘Chega de Estupros em Rio das Ostras’ são alguns deles.
A universitária de Produção Cultural Mafe Vale, faz parte do Diretório Central Estudantil (DCE) da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Rio das Ostras, e relata diversos casos de abusos ao redor da universidade.
“Os problemas com os estupros em Rio das Ostras é muito sério, porém existem poucas políticas públicas realmente eficazes para tratar disso. Toda universitária da cidade tem um caso de abuso para contar, muitas tem até um caso de estupro. Qualquer garota aqui conhece alguém que sofreu um estupro. É muito sério, mas isso é tratado com descaso”, argumenta a diretora da coordenação do DCE de Rio das Ostras.
Mafe conta também que está havendo uma movimentação dos estudantes para que a reitoria do campus tome providencias, junto a Prefeitura de Rio das Ostras, para sanar o problema e acabar com a omissão dos órgãos públicos.
“Já houve casos que dois homens estranhos pararem na porta da UFF para assediar uma estudante. Não temos nenhuma segurança aqui. Muitas alunas tem medo de sair sozinhas e sempre tem que andar em grupos. Estão acabando com nossa autonomia”, comenta a universitária.
Integrante do Coletivo Construção e do Movimento ‘Chega de Estupros em Rio das Ostras’, Nayana Ribeiro, conta que várias atitudes poderiam ser tomadas para melhorar a questão da violência de gênero no município.
“Acredito que ações simples como melhora na iluminação, mais patrulhamento, melhor atendimento na delegacia para casos de estupro ou abuso e ações didáticas nas escolas poderiam reduzir a médio e longo prazo os índices da cidade. Mas enquanto isso muitas mulheres estão sofrendo com esse descaso”, comenta
A estudante de Produção Cultural na UFF, Pétala Cormann, participante do grupo ‘Chega de Estupros em Rio das Ostras’ comenta que já virou um lugar comum o medo de andar na rua, não importando a hora do dia.
“Você percebe como isso mexe com a sua cabeça quando você passa a não andar nas calçadas por medo de que algum homem vá surgir do nada, te agarrar e te puxar para um terreno baldio. Quando você sempre pergunta o horário de algum evento e analisa se o horário pode ou não ser perigoso por conta do medo de estupro ou assédio”, comenta a universitária.
O Movimento “Chega de Estupros em Rio das Ostras” organiza vários eventos e mobilizações como o “Piquenique noturno – que nos devolvam a noite”, que aconteceu no início de dezembro e mobilizou mulheres da UFF e de todo o município a reconquistarem o direito de andar depois do anoitecer.
Ações da Prefeitura de Rio das Ostras
A Prefeitura de Rio das Ostras, através de sua Assessoria de Imprensa, informa que ampliou o atendimento para mulheres vítimas de violência doméstica intrafamiliar. Entre as ações estão a acolhida especializada, acompanhamento no Programa de Atendimento Especializado para Famílias e Indivíduos em Situações de Violação de Direitos (PAEFI), Roda de Conversas e Orientação Jurídica.
Os atendimentos acontecem no Centro Especializado de Referência de Assistência Social (Creas), localizado na rua Araguaia, nº 150, Balneário Remanso. O Creas funciona de segunda a sexta-feira, de 8h às 17h.
Atendimento de Saúde – As mulheres vítimas de violência sexual devem procurar imediatamente o Hospital Municipal, para que possam obter o atendimento médico adequado. Serão tomadas medidas para reverter ou evitar as Doenças Sexualmente Transmissíveis e a possível gravidez decorrente do estupro. Após esse primeiro atendimento, a mulher será encaminhada para os demais serviços da rede de proteção à mulher.
No caso de violência não sexual o atendimento de saúde de emergência se dá no Pronto-Socorro.
No caso de mulheres adolescentes (entre 10 e 19 anos) vítimas de quaisquer tipos de violência, após o atendimento emergencial, existe acompanhamento especializado pelo Núcleo de Atenção Integral à Saúde do Adolescente (Nasa), sediado no Posto de Saúde de Nova Esperança.
Rede de Serviços – As mulheres vítimas de violência também podem recorrer a unidades não especializadas, onde recebem atendimento e são encaminhadas a outras unidades da rede de proteção. Em Rio das Ostras, elas podem buscar ajuda no Hospital municipal, Pronto-socorro Municipal, Programa de Saúde da Família, Delegacia, Polícia militar, Centro de Referencia em Assistência Social (Cras), Centro Especializado de Assistência Social (Creas), Ministério público e Defensoria Pública.
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