O Rio de Janeiro ainda era chamado de “Guanabara”, quando uma americana muito jovem, chegou ao Aeroporto. Ela ia passar uns tempos por aqui, pois estava fazendo uma pesquisa para a sua Tese de Doutorado. Janice Perlman não era a primeira, e nem seria a última estrangeira a estudar o Brasil e sua sociedade. Mas, ao invés embrenhar-se na selva, como fez Claude Levy Strauss, ela resolveu ir para uma favela carioca. Na verdade, ela foi morar em quatro favelas diferentes.
Janice Perlman pretendia saber como os moradores de favela integravam-se no “outro mundo” da cidade, aquele do asfalto, do trabalho e da vida cotidiana. Sua intenção era saber como em uma sociedade atravessada por tantas barreiras de ordem racial, social e econômica, os trabalhadores pobres integravam-se, ou não, à economia de uma cidade como o Rio de Janeiro.
Havia um complicador a mais. Estamos no início da Ditadura Militar, e tanto nas universidades quanto na sociedade em geral, havia o temor de sofrer as represálias sobre qualquer coisa que era dita, ou mesmo atribuída a alguém que dissesse respeito ao governo militar.
Era época também do surgimento do discurso oficial do governo do Estado da Guanabara sobre a “necessidade” de remover as favelas que estavam localizadas em vários pontos nobres da Zona Sul. Durante as décadas de 40 e 50, Copacabana transformou-se no modelo de urbanização para aquela área da cidade. Edifícios altos, vida noturna agitada, comércio variado, moradores com uma renda e estilo de vida de classe média, tudo isso identificava Copacabana como o modelo a ser seguido. Copacabana não enganava ninguém.
Os bairros próximos, como Ipanema e Leblon, ainda possuíam muito do estilo do início do século XX, época em que aquelas regiões começaram a ser ocupadas. Casas em estilo eduardiano eram residências fixas ou de veraneio de famílias que decidiram mudar-se do Centro da cidade em busca de tranquilidade.
Estas mesmas famílias tinham à sua disposição, o trabalho de centenas de famílias de antigos pescadores, operários e suas esposas, que davam ao Leblon e a Ipanema um ar muito diferente da paisagem que vemos hoje. Na prática, bairros como Leblon, Gávea e Botafogo eram ocupados por uma grande população de trabalhadores. Onde eles moravam? Em vilas operárias, cortiços e favelas espalhadas por estes bairros. Favelas como a Praia do Pinto, no Leblon e Catacumba, na Lagoa eram na época as maiores favelas da cidade.
Previsivelmente, o tamanho da população destas favelas estava correlacionado à proximidade que os seus moradores tinham do mercado de trabalho.
E foram estas favelas as visitadas por Janice Perlman. O que ela viu, ouviu e escreveu mudou a maneira com que as favelas cariocas fossem encaradas de uma maneira muito diversa. Até então, havia o senso comum de que as favelas eram antes de tudo, locais de degeneração social e moral. A combinação de moradias insalubres, pobreza e baixa escolaridade, segundo este raciocínio criou o discurso de que as favelas deveriam ser erradicadas, custe o que custasse.
Esta mesma teoria defendia a tese de que os “favelados”, por serem favelados, eram seres dotados de um sistema de valores completamente diferente daqueles dos demais moradores do “asfalto”. Na prática, este pensamento concebia as favelas como enclaves de “selvagens” em meio urbano. Ora, o que o Poder Público deveria fazer segundo esta linha de argumentação? Tirar estes mesmos “selvagens” do estado em que se encontravam. Assim, a primeira coisa a ser feita era retirá-los daquele ambiente e levá-los para moradias consideradas “adequadas”. Da mesma maneira, pensava-se que estes favelados deveriam ter acesso a um outro modelo de trabalho: ao invés da informalidade do serviço doméstico e do “biscate”, o trabalho de carteira assinada, regular, com horário de entrada e saída.
O que Janice Perlman viu nestas favelas era uma realidade completamente diferente deste senso comum, que era partilhado tanto por jornalistas e intelectuais, quanto pelas autoridades do governo da Guanabara. A socióloga americana constatou que os “favelados” possuíam um sistema de valores muito próximo aos seus concidadãos do “asfalto”. Aspiração de ascensão social, organização para o trabalho, valorização da educação como instrumento de mobilidade social, tudo isso foi observado por Janice Perlman.
Mas havia também a determinação dos governadores Carlos Lacerda e Negrão de Lima, de retirarem as favelas destas regiões da Zona Sul, e deslocar esta população para outros cantos da cidade.
O objetivo era alocar estes moradores nos conjuntos habitacionais que o governo estadual havia construído, ao longo da Avenida Brasil. A Avenida Brasil fora construída anos antes, pelo governo do então Presidente Eurico Gaspar Dutra. Era uma maneira do governo realizar a antiga aspiração de consolidar a ocupação do subúrbio do Rio de Janeiro com a implantação de indústrias e criar também uma via de escoamento ligando a capital federal ao restante do país, principalmente São Paulo e Minas Gerais.
O problema é que na época poucos investidores morderam a isca de abrirem indústrias nas distantes áreas do subúrbio. A construção de conjuntos habitacionais próximos às fábricas na Avenida Brasil, iria permitir colocar essa mão de obra próxima ao local de trabalho. Tudo isso era perfeito no papel, mas faltavam alguns detalhes. O primeiro era dobrar a resistência dos moradores das favelas na Zona Sul em aderir ao plano governamental de remoção dos moradores. Janice Perlman assistiu isto de perto. Enquanto fazia a pesquisa de campo na Catacumba, ela viu os seus moradores se organizarem para oferecer ao governo estadual um plano de urbanização daquela favela. Ou seja, os moradores apresentaram ao governo um plano urbanístico de construção de novas residências e saneamento básico que contava com a mão de obra fornecida pela própria comunidade.
Vale registrar que isto aconteceu em plena ditadura militar. O projeto de uma urbanização colaborativa entre moradores e Poder Público permanece ainda, uma realidade distante na maioria das cidades do Brasil, mesmo hoje no século XXI.
A História mostra estes esforços não deram em nada. As populações foram removidas para os conjuntos habitacionais e lá, iniciaram um outro capítulo em suas vidas.
Mas tudo aquilo que Janice Perlman testemunhou virou uma Tese de Doutorado que anos depois, foi publicada com o título de “O Mito da Marginalidade”. Décadas depois, no início do século XXI, Janice Perlman voltou ao Brasil e tentou localizar onde estavam as pessoas que ela conheceu naqueles anos sombrios da Ditadura.
Este reencontro rendeu também um outro livro “Favela”, uma reflexão sobre o que seria hoje uma favela no Brasil, comparada à realidade que ela encontrou, quatro décadas atrás.
A favela do século XXI, ainda é o lugar onde as pessoas são dotadas de um grande dinamismo, mas padecem de um estigma tão forte ou mais intenso do que o preconceito do passado. Quarenta anos depois, segundo Janice Perlman “ser favelado” já não é mais morar em barracões de madeira, sem eletricidade, água na torneira ou saneamento, mas significa ainda não conseguir emprego porque mora em “área de risco”, significa ser revistado sistematicamente pela Polícia, ou morrer vítima de uma bala perdida.
Ler os dois livros de Janice Perlman é como fazer uma viagem no tempo. A história do Rio de Janeiro e a de sua classe trabalhadora se cruzam no seu relato. Talvez, alguém um dia resolva tomar a decisão de juntar estas duas obras impressionantes e escrever uma contraparte brasileira à “Formação da Classe Operária”, obra seminal de E.P. Thompson. Quem sabe, quem sabe…