Talvez meu cansaço esteja relacionado ao fato de quem fez a merda conosco estar cada vez mais protegido, menos atacado, menos ameaçado e aquilo que nós somos é colocado em xeque por nós mesmos.
Bicho, depois de um período estudando, escrevendo e argumentando sobre a questão racial, posso dizer que estou cansado. Entenda, estou cansado, mas sem comparações ao irmão que tem que carregar caixas e caixas de mercadoria o dia o todo e nem a irmã que tem que cuidar e alimentar o filho de mais um profissional liberal.
A canseira é o nó sem poucas possibilidades de se desatar. Como se chegássemos ao momento de invadir o prédio pra tomar tudo e alguém do carro de som dizer bem alto que não é bem assim. E talvez não seja mesmo. Aí vem a frustração e você se pergunta: O que to fazendo aqui?
Denúncias de racismo terão ainda aos montes, é fato. Qualquer país de origem escravocrata terá isso no cotidiano durante um bom tempo. Uma elite estratificada, bem delimitada e de tempos em tempos mostrando que podem fazer o que quiser, sem ser punidos. Outra característica bem marcante de um país de origem escravocrata.
Reação contra o sistema de quem sofre pelo sistema também é praxe. Com uma política de agoniação e extermínio dos pretos e nativos (índios), durante e pós-escravidão, não reagir é no mínimo estranho. E as reações são diversas, com quilombos, revoltas, arte e com o discurso. Produção intelectual e discurso público sempre foi arma.
De você tornar um mecanismo jurídico a sua capacidade de se rebelar contra seu algoz, de você questionar uma fraude na carta de alforria, de você produzir jornais denunciando o tratamento dado aos pretos, de você ter discursos e questionamentos a posição do País na ONU e de você escrever livros, teses, ministrar aulas.
Caminhos legítimos além daqueles que se moldaram naquilo que chamamos de artes negras. O quanto de pedagógico e libertador é você prestar atenção no samba, no jongo, na capoeira, no maracatu, no carimbó, na ciranda, no tambor de crioula, no congado, no texto de Lima Barreto, de Carolina Maria de Jesus, nas esculturas de Aleijadinho, nos quadros de Djanira e por aí vai.
Muita coisa, né? Existe uma complexidade inscrita, escrita, falada e apontada na qual muitas das vezes é ignorada e aí se tem a discórdia. Além da discordância, sabe? É às vezes você ignorar todo o tronco de produções pautados na resistência e começar a relevar aquela coisa que justamente serve para deslegitimar a resistência.
Isso cansa porque a deslegitimação funciona de uma maneira de você considerar só um grupo de ideias, um grupo bem minúsculo de ideias, desconsiderarem trajetórias, estratégias e sobrevidas por conta de imposição de ideias e valores que são mais enxertos daquilo que você combate do que outra coisa.
A gente combate o racismo e suas ações que massacram o físico, o psicológico, o intelectual e o espiritual daqueles que são considerados inadequados ao sistema. A história de qualquer país de origem escravocrata tá aí pra mostrar. Analise as políticas públicas, o número de homicídios, os acessos ao sistema de proteção social, a questão da moradia, da educação, da renda e tá lá. Quem tem vantagem e quem não tem? Se não quiser ter o trabalho, teve gente que teve e expos isso em artigos e livros aos montes.
O racismo produz discurso e quando você é resistência no discurso, virá sempre à sedução do discurso racista, disfarçado de libertador, para dá suporte ao que você fala. Você aceita e começa a transitar por espaços e conhecer pessoas nas quais nunca teve a chance de conhecer. Acessa coisas, bens e acessórios nos quais realmente não tiveram em suas mãos durante muito tempo. E como larga de mão?
Não larga e começa a tentar minar o discurso de resistência, provoca ruído, provoca rachadura e muita, mas muita coisa se perde com o brilho de ser iluminado por algum momento. Não há o iluminado na resistência anti-racista, há produções, discursos e táticas iluminadas, feitas por mulheres e homens pretos ao longo da história.
Não se pode ignorar isso, não deveria se ignorar isso, mas se ignora. Cansa! A luta é árdua e cansativa, atravessará gerações, mas o básico não pode ser desfeito. Não podemos nós mesmos invisibilizar aquilo que já produzimos em nome de agendas impositivas. Não perceber comportamentos e falas do colonizador, é erro. E um erro bem mais comum do que se imagina.
Cuti dizia que a consciência negra é a gente entender nossas dores, nossas angústias, nossos prejuízos, quem de fato fez isso conosco e usar isso contra o opressor pra nos libertar dos grilhões físicos e espirituais. Talvez meu cansaço esteja relacionado ao fato de quem fez a merda conosco estar cada vez mais protegido, menos atacado, menos ameaçado e aquilo que nós somos é colocado em xeque por nós mesmos.
Precisamos ser colocados em xeque, é fato. A separação do joio do trigo é fundamental. Quem é joio e quem é trigo? Quem anda decidindo isso? A decisão tá na nossos mãos, o manuseio tá na nossas mãos?
“Tô fora, meu deus, tô fora
Sei que sou preto e tenho um legado
Pegar minha real porção no prato é o tratado
Mesmo que essa merda de mundo desmorone”
Vamos chegar a essa fase de fato? Espero mesmo cansado…