Professor Paulo Roberto
Quando o Império do Brasil resolveu fazer um Censo para todo o país, tinha duas coisas em mente: a primeira era implementar uma política de gestão do território e da população, de modo que o governo central tivesse em mãos, informações sobre os mais diversos cantos de um país de dimensões continentais. A segunda era saber, com o maior grau de precisão possível, quantos escravos o país ainda possuía.
Na época, isso era uma questão tão importante quanto hoje saber o tamanho do PIB, ou o valor de nossas exportações. Do ponto de vista da comunidade internacional, isso significava que o então Império do Brasil estava empenhado em dar um fim à escravidão, motivo de verdadeiro constrangimento para o país.
O leitor pense na seguinte situação: imagine um país hoje que esteja constantemente nas manchetes de jornais por suas constantes violações aos direitos humanos, um país na África ou na Ásia, por exemplo. Agora imagine a comunidade internacional organizando uma série de sanções contra este país. Recentemente, o Qatar foi alvo destas sanções, sob a acusação de financiar operações do Estado Islâmico. Pois bem, naquela época, manter a escravidão, ainda no final do século XIX, como era o caso do Império do Brasil, era algo tão sério quanto.
O Censo portanto, fazia parte de um pacote de medidas, cuja finalidade era compatibilizar os interesses da comunidade internacional e os interesses dos proprietários de escravos espalhados pelo Brasil. Quando os funcionários comissionados do Império chegaram a esta região hoje conhecida como “Região dos Lagos”, o que encontraram foi uma cidade como Cabo Frio, com uma enorme extensão territorial, mas com uma população diminuta, 16000 mil pessoas. Bem, estes mesmos funcionários dividiram esta população em “Livres” e “Escravos”, mas também em categorias como “Pretos”, “Pardos” e “Brancos”.
Em uma cidade cosmopolita como o Rio de Janeiro, Corte do Império e centro político e econômico do país, a escravidão era a condição comum de 18% da população, na época. Isso significava que “ser escravo” ainda fazia parte do cotidiano da cidade, mas os dias em que o Rio de Janeiro era a maior cidade escravista desde o império romano, ficaram para trás.
O abolicionismo, a oposição aos desmandos do Império encontravam um terreno fértil em uma cidade assim. Quanto mais a cidade do Rio de Janeiro crescia em população e atividade econômica, menor o presença da escravidão nesta paisagem. A urbanização de uma maneira geral, funcionava como um ácido contra a escravidão, dissolvendo-a aos poucos, mas isso é um assunto que tratarei mais detidamente em outras oportunidades.
Em Cabo Frio, no entanto, sede e cabeça desta região, a coisa era muito diferente. Aqui, o Censo de 1872 registrou que 33% da população da cidade ainda era escrava. Caro leitor, números dizem muito mais do que podemos imaginar. Se prestarmos atenção a estes mesmos números, podemos constatar que o peso da escravidão em um rincão afastado do Império, como era Cabo Frio na época, era muito maior do que em uma cidade como o Rio de Janeiro. Em termos práticos, isso significava que a resistência à abolição da escravidão era muito maior em lugares como estes, do que em grandes cidades. Para o Poder Central, acabar com a escravidão era “a coisa certa a fazer”, uma atitude mais alinhada com a aspiração do país a figurar ao lado das nações desenvolvidas. Mas, a nível local, a percepção era muito diferente. Aqui, como em tantos outros rincões do país, acabar com a escravidão era condenar o futuro da nação. Não foi por acaso que os proprietários de escravos de Cabo Frio, enviaram uma representação ao Ministro da Justiça, mostrando a sua preocupação sobre o rumo dos debates em torno da abolição.
No documento, eles deixaram bem claro que não se opunham, ao menos em linhas gerais, à abolição. Sua discordância residia na maneira como a coisa estava sendo feita. Na opinião dos proprietários de escravos de Cabo Frio, eles já estavam fazendo “a sua abolição”. Como ela estava sendo feita? Mais ou menos assim: um proprietário decidia alforriar um escravo estabelecendo um “contrato” no qual ele se comprometia a libertar o escravo, mediante uma promessa de que este pemanecesse trabalhando pelo menos, por 10 anos nas terras de seu senhor. Na prática, era um finaciamento, algo semelhante a pagar com trabalho, uma dívida contraída com a compra de um bem, no caso a liberdade do mesmo.
Para estes proprietários de Cabo Frio, esta era uma maneira “razoável” de fazer a abolição. Estes mesmos proprietários queixavam-se de que o Império em nenhum momento, havia deixado claro se iria ou não indenizá-los. Raciocinavam eles que, na ausência de uma política pública efetiva para a abolição, eles decidiram então, tomar a iniciativa. O que percebemos com isto é um indício de como esta questão estava sendo enfrentada em inúmeras cidades da então província do Rio de Janeiro, e muito provavelmente de boa parte do Brasil.
Havia enfim, dois modos de olhar a escravidão, o seu futuro e o destino do Brasil. O modo Imperial, aquele típico da Corte, encarava a questão “de cima”, apoiado em instrumentos como o Censo, a legislação e a burocracia. Mas havia também, o modo de ver local, aquele que entendia que os interesses do produtor local, que no final das contas era o responsável pela riqueza do Império, não estavam sendo contemplados. Para estes proprietários, a escravidão não era “uma coisa do passado, muito pelo contrário. Ela estava viva e poderia durar muitos anos mais.
Foi neste terreno cheio de tensões entre as “nobres aspirações de D. Pedro II” e o pragmatismo dos senhores de escravos de cidades como Cabo Frio, que a questão da abolição da escravidão arrastou-se, até o dia em que uma Princesa Isabel, declaradamente abolicionista, assinou um pedaço de papel selando o destino de muita gente
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