É boa conduta não subestimar ou menosprezar adversários. No geral é prudente tentar praticar dedicada reflexão buscando compreender as circunstâncias que nos levam ao embate, entender de forma realista as motivações e justificações que dão legitimidade ao opositor e até realizar o difícil exercício de encontrar no outro aspectos admiráveis e pontos fortes. Mais que um proceder honrado, o que já aumentaria nossa própria força moral diante da luta, o sentido maior é o ganho de compreensão sobre o padrão das forças contra as quais resistiremos.
É evidente que a derrota eleitoral de Haddad para Bolsonaro tem dimensão estratégica e cultural para todas as esquerdas. As resistências diante do processo de realinhamento do Brasil (e de toda América do Sul) à órbita de influência americana, no contexto de suas disputas com a China, que se intensificam aqui a partir das tais “jornadas de junho de 2013″, sucessivamente malograram até o ponto culminante da ascensão da extrema direita ao poder institucional. Isto pode ser demonstrado pelos jargões que representaram as posições nas fases (sempre meramente reativas, defensivas per si) das esquerdas ao longo de todo o trecho:
“Não vai ter golpe” – e teve.
“Fora Temer” – e ficou lá.
“Lula Livre” – e seguiu preso.
“Ele não” – e Bolsonaro venceu.
São todas objetivas derrotas das hashtags que representaram as resistências políticas e culturais das esquerdas e têm em comum fazerem parte encadeada de um mesmo processo geral de seu progressivo esvaziamento na luta institucional e de ideias. Com isto não se diz que essas resistências não tenham deixado seu legado e que não tenham sido importantes para a consolidação de um bloco de aglutinação capaz de oferecer contra-narrativa, é também evidente que sim. Tanto pior seria a situação geral caso não tivessem ocorrido, por definição.
Ainda assim, as esquerdas imaginaram-se tendo uma força cultural acima da realidade, em cada um destes momentos. Pautando-se sempre pelo movimento adversário, ofereceu resistência frontal em todos os casos, sem recorrer a quaisquer mediações de discurso, articulou-se muito pouco e – principalmente – tratou como tema secundário o problema principal: do antártico isolamento político a que foi submetida no jogo de forças político-culturais. Em perspectiva, é razoável dizer que, dadas as circunstâncias, essas resistências tiveram resultado surpreendente e, até mesmo, heróico. Depois de tantos sucessivos ataques de eliminação, é realmente impressionante o tamanho social que as esquerdas ainda têm e a resiliência que demonstram. Persistem como contraponto teimoso e necessário a uma nova ordem que se anuncia.
No caso da ascensão da extrema direita brasileira, levará ainda tempo para que todas a dimensões do fenômeno estejam realmente claras. Além disso, será a soma das inteligências e experiências coletivas dos partidos, movimentos populares e quadros da esquerda que conseguirá, de forma dedicada, montar o difuso quebra-cabeças. Nesta época de intensa produção intelectual interativa, que é subproduto metodológico do nosso tempo digital, isto é ainda mais verdadeiro. Ainda assim, quanto mais produzirmos criticamente e escrevermos sobre o assunto, mais velozmente construiremos consensos urgentes. São estas as notas iniciais necessárias para dividir algumas percepções.
Uma auto-crítica seguidamente não assimilada: a frente ampla
Uma das dimensões reincidentes em toda a retórica da esquerda de norte a sul de seus agrupamentos e partidos, sempre foi a importância de uma resistência ampliada frente ao perigo democrático e nacional que a modalidade radical de direita que assume o poder no Brasil significa. Neste sentido, é nota obrigatória reconhecer o acerto do diagnóstico feito pelo PCdoB, quando muito antes das eleições priorizava a necessidade da construção de uma frente (o mais ampla possível) para resistir às tempestades vindouras. Mais que isso, embora todas as demais forças populares reconhecessem em seus discursos a mesma necessidade, esta foi, lamentavelmente, a única organização consequente a traduzir o discurso em ato prático ao recuar com sua (ótima) candidata, Manuela D´Ávila. Ainda assim, a chapa Haddad-Manuela sequer significava uma unidade das forças populares todas, quem dirá uma ampla frente nacional para além das esquerdas. Sem buscar culpas, ficou pelo discurso apenas a imperiosa necessidade de unidades amplas.
Contudo, o problema aqui certamente não é elogiar preteritamente a formulação ou ação de um único partido, mas diagnosticar algo muito grave para o futuro: nem os partidos e líderes de esquerda parecem compreender realmente a grave necessidade de uma frente ampliada – e sequer estão a praticá-la atualmente, ao menos não de qualquer maneira realmente visível. Pelo contrário: tão logo acabadas as eleições, o debate infantil predominante tornou-se “quem teria o protagonismo de tal frente”, demonstrando cabalmente que nenhuma auto-crítica fora assimilada. As tensões entre PDT e PT, por exemplo, escalonaram ainda mais após a eleição, e a distância relativa entre os dois partidos é maior agora do que era durante o pleito, ao arrepio da necessidade histórica por coesão. Todas as retóricas seguem firmes a dizer o quanto uma frente unida é muito importante enquanto as práticas reais das burocracias partidárias redundam em replicação das mesmas lutas por institucionais hegemonia – que a impedem. Não há, até aqui, nenhum sinal estratégico de revisão deste procedimento. A depender da evolução do cenário nacional esta conduta de luta por hegemonia, aparentemente pragmática e justificável, poderá em breve, até ser caracterizada como ingênua.
O melhor laboratório de luta conjunta intra-esquerdas até aqui tem sido as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Embora destacadas e valorosas, suas limitações são bastante conhecidas e não influenciam de maneira decisiva o comportamento institucional dos partidos envolvidos. São importantes experiências, mas amplamente insuficientes. Até aqui, a realidade apresenta o dado de que esquerda não parece ter aprendido a lição de que tem que se unir. E sem sequer unidade das esquerdas, é bastante difícil imaginar uma frente ampla para além delas.
Leonardo Giordano nasceu em São Fidélis (RJ), mas vive em Niterói desde 1994. Atuou inicialmente em política no movimento estudantil, ainda aos 15 anos. Fez sua primeira campanha eleitoral nos ônibus e nos sinais de trânsito da cidade, em cima de um caixote, tendo contato direto com a população, o que mantém como prática. Assumiu o primeiro mandato de vereador como suplente em 2007. Foi eleito em 2012 e reeleito em 2016 para a mesma função. Atualmente é vereador na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, e recordista em leis aprovadas (52), projetos de lei e audiências públicas realizadas entre os mandatários locais.