Por Mark Zussman
O próximo Presidente dos Estados Unidos é um charlatão, e os dois principais componentes do ato dele são, em inglês, swagger e bluster. Bluster se traduz sem grandes dificuldades. Bluster, basicamente, é fanfarronice. Só que é especificamente a fanfarronice, geralmente sem o poder de fogo necessário para sustentá-la sob um pouco de resistência, de um bully. Swagger é mais difícil. Em português nós temos uma grande variedade de palavras para como as pessoas passam, fisicamente, pelo mundo. Além das corriqueiras andar, caminhar, passear, perambular, correr, etc., nós temos vaguear, flanar, requebrar, bambolear, e dezenas a mais, e no reino dos substantivos nós temos a ginga, o jogo de cintura e, graças a Vinícius de Moraes, o gostoso doce balanço, caminho do mar. Mas eu nunca encontrei uma palavra ou uma expressão em português que captura exatamente as dimensões de swagger.
Swagger é o jeito de se propulsionar de um bully. Significa proceder de uma maneira tal que o swaggerer (o swagger-eiro) ocupa mais do que o seu justo quinhão de espaço no mundo, invade constantemente o espaço protegido e privilegiado de outras pessoas, e no mesmo tempo irradia ares de superioridade e ameaça, mas, na verdade, um swaggerer-mor, isto é um mestre em swagger, como o Trump, consegue irradiar as mesmas vibrações sentado. Pode ser que o swagger seja a maneira de se propulsionar de um macho alfa; disso, eu não sei por certo. Mas com certeza é o jeito de se propulsionar de um macho alfa fajuto e farsante come o Charlatão-Eleito.
Para um americano, como eu, parece quase tão inacreditável quanto um hipopótamo voar, mas, daqui a menos de duas semanas, se ele não enfartar, sofrer um AVC ou simplesmente explodir e se tornar, por alguns instantes, uma brilhante labareda antes de desaparecer para sempre, esse charlatão blustering (bluster-ando) e swaggering (swagger-ando) receberá as chaves à Casa Branca. (Sempre se corre um risco quando se fala metaforicamente e não literalmente e, falando literalmente, não haverá chaves. A entrega de chaves não faz parte de um ritual exótico lá em Washington como, por exemplo, a entrega da faixa presidencial quando entra um novo Presidente em Brasília. A Casa Branca é protegida por esquadrões de caças baseados no Campo Andrews a pouca distância de Washington, por uma grade de ferro, por uma rede de sensores de moção infravermelhos, por vidros à prova de balas, por franco-atiradores no telhado da Casa Branca e nos telhados de outros prédios circundantes, e por múltiplas equipes de agentes fortemente armados no chão. Não sei por certo, mas é totalmente possível que a Casa Branca não tenha nem chaves nem mesmo fechaduras. Tecnologia de séculos passados.)
De qualquer forma, com ou sem chaves, o Charlatão-Eleito será empossado às 12 horas do dia 20 de janeiro, como prescreve a Constituição, e sabe-se lá o que vai acontecer exatamente, mas a probabilidade é grande que, quase imediatamente, os EUA darão alguns passos de gigante em direção, como escreve Paul Krugman, Prêmio Nobel em economia, no The New York Times, à condição de um -stão. Um -stão? Os -stãos (ou -stões, se se prefere) são aqueles estados órfãos da defunta União Soviética – Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, e outros, todos em Ásia Central – caracterizados por um capitalismo de conivência, ou seja, o bom e velho cada um por si (que o Diabo leve o último!), quer dizer, roubalheira e, para garantir a tranquilidade da roubalheira, como chefe de estado um homem forte desdenhoso dos pormenores da lei e com um apego à democracia meramente retórico. Mas eu confesso que eu não sei quase nada desses estados centro-asiáticos. Pode ser que um ou outro deles seja admirável e, se esse é o caso, peço perdão pela comparação injuriosa com os EUA da desgraça agora emergentes a todo vapor.
Ideia interessante essa em circulação, que as pessoas e as classes mais prejudicadas pela globalização nos EUA poderiam ser salvas por um bilionário várias vezes falido (não como pessoa física mas como pessoa jurídica) e notoriamente caloteiro. É uma ideia que uma pessoa meio racional nunca chegaria a entender, se não fosse pela atmosfera de irrealidade geral gerada, lá, pelos parques Disney, por Las Vegas, pela televisão alienante e escapista, por Hollywood, e pelas novas fontes ditas noticiosas mas, na realidade, fontes só de sensacionalismo e mentiras.
Mas é a verdade que muitos milhões de americanos com efeito não podem mais ansiar por um futuro “melhor” – isto é, mais próspero, com mais, e mais novos, carros, mais, e mais novos, televisores – do que o dos seus pais. A ideia que, em troca de trabalho assíduo e honesto e respeito pelas leis, cada geração progrediria além da condição financeira e do nível de bem-estar dos seus pais, é, faz muito tempo, um dos principais pilares da fé cívica norte-americana. E pode-se esquecer os avanços esperados entre as gerações. Muitas pessoas lá nos EUA estão vivenciando, agora, um retrocesso dentro do compasso de uma única vida. Isto é, o estilo de vida americana está em perigo! A República está em perigo!
E aí veio Trump. (Acho que não é a primeira vez que escrevo essa frase aqui nestas páginas virtuais.) Aí veio Trump. E com o gênio de showman que ele tem, igual ao de um Faustão ou um Ratinho aqui no Brasil, ele se conectou emocionalmente com um público – não com a população inteira mas com uma grande parte dela. Eu não sei se vocês, buzianos, sabem, mas, por muitos anos, o Trump pilotava o programa “The Apprentice” na televisão americana, e esse, agora pilotado por Arnold Schwarzenegger, o Exterminador, é o original de O Aprendiz, que primeiro Roberto Justus e depois João Doria pilotavam, na Rede Record, aqui no Brasil. É o Trump que inaugurou a frase de efeito “Você está demitido” (“You’re fired”).
Estranho! Semana após semana, o Trump demitiu, à vista de milhões de telespectadores, às vezes brutalmente, um aspirante simpático e vulnerável. Também à vista de milhões de telespectadores, o aspirante frequentemente irrompeu em lágrimas. E, apesar disso, o Trump, durante a sua campanha eleitoral, conseguiu forjar um vínculo afetivo com um público cujo grande receio é exatamente isso, a demissão. Não parece a coisa mais óbvia, intuitivamente. Mas, como candidato a Presidente dos EUA, apesar de ele ser uma pessoa extremamente desagradável, ele identificou os problemas do país exatamente como uma grande parte da população lesada e ressentida identificava os problemas do país, e essa população babava.
Por que essas pessoas estavam desempregadas ou, se não desempregadas, então trabalhando por uma ninharia como cozinheiros de hambúrgueres em lojas de McDonald’s e, mesmo assim, com medo de serem desempregados de um minuto para o outro? Porque, na visão deles e na retórica exaltada do Trump, os chineses e os mexicanos poderiam ser contratados para montar os mesmos carros e confeccionar os mesmos jeans, na casa deles, por menos. Na mesma visão e na mesma retórica, o entusiasmo dos Republicanos tradicionais e de Democratas, como Bill Clinton e Barack Obama, meio republicanizados, por acordos de livre comércio só agravava as dificuldades. Trump não era um Republicano tradicional. Era um populista. E, assim como Bernie Sanders, o socialista que se opunha a Hillary Clinton durante as primárias, Trump prometeu acabar com esses pactos de livre comércio e, no lugar deles, impor impostos sobre importações.
E por que mais tantos americanos estavam vivendo em circunstâncias reduzidas ou com a ameaça desse acaso? Porque, na visão deles e na retórica do Trump, os imigrantes e, pior, imigrantes ilegais – mexicanos sobre tudo – estavam roubando empregos americanos no próprio território norte-americano. Por tanto, o famoso “belo muro” que o Trump prometeu erguer na fronteira entre Texas e o México, mais uma vez nessa atmosfera de irrealidade que assola os EUA. (Podem ficar sossegados, brasileiros. Vocês não entravam nesta equação. Diz-se que há até um milhão de brasileiros morando nos EUA, muitos deles sem visto válido, mas por vários motivos, entre eles, que os brasileiros não são facilmente identificáveis como uma única etnia, eles não provocam quase nenhum ressentimento.)
E um último agravo do público, predominantemente branco, que votou no Trump. Os Democratas, por muitos anos, tendiam a identificar as minorias – negros e outros – como os grupos mais necessitados e, portanto, mais precisando de ajuda. Os corações dos ramos mais liberais (e, paradoxalmente ou não, mais elitistas) do Partido Democrata partiam-se para essas minorias, e, por isso, as políticas do Partido Democrata favoreciam essas minorias em detrimento dos brancos deslocados e, às vezes, marginalizados pela globalização, e, como todo mundo sabe, o país pertence, finalmente, aos brancos; os negros, os mexicanos e os outros estranhos estão lá só por acidente (no caso dos negros) ou por políticas de imigração falidas (no caso dos outros). Trump sinalizava que os verdadeiros donos do país voltariam a ser tratados com respeito.
Repito: Não é mentira que milhões de americanos estão sendo prejudicados pela globalização. É a verdade. Mas as soluções são elusivas. E as soluções que o Trump propõe são soluções falsas. Na imprensa responsável norte-americana, pode-se ler, todo dias, um novo artigo sobre como, se os chineses e os mexicanos não acabarem com os postos de trabalho nos EUA, então é a robotização que acabará com eles. Há uma piada constantemente repetida. Que na fábrica no futuro haverá só dois entes vivos, um homem e um cachorro. O homem para alimentar o cachorro e o cachorro para garantir que o homem não mexa com a maquinária. Mas o Trump, durante a campanha, nunca se endereçou às questões abaixo da superfície, e aparentemente, não as entendia.
O Trump falava em bravatas. “O país está roto e eu sou o único que pode concertá-lo.” Mas o país não estava simplesmente roto. Tudo, segundo ele, era um desastre completo ou um desastre absoluto ou um desastre total. Essas contavam entre as locuções que ele mais frequentemente repetiu. Quanto ao Obama, ele é “tão estúpido”, “um incompetente total”, “um fracasso delirante”, “talvez o pior Presidente na história dos EUA”. Todos os nossos líderes, todos os nossos políticos eram, segundo ele, estúpidos. Mas ele, segundo ele, era “inteligente mesmo”. “Meu QI é um dos mais altos e todos vocês sabem isso.” Não tanto quanto as orientais mas mesmo as nossas sociedades ocidentais geralmente valorizam a modéstia. Mas nesse caso, não. As pessoas que se sentiam lesionadas pela globalização adoravam. Babavam. Acho que são basicamente as mesmas pessoas que ligam “agora” (“as nossas operadoras estão esperando”) para comprarem as curas milagrosas vendidas nas altas horas na televisão.
Agora, os Estados Unidos se encontram num período de transição entre duas administrações presidenciais, e eu tenho a impressão que as pessoas que votaram no Trump ainda estão otimistas. Mas não sei por quê. Entre a eleição no dia 8 de novembro e o final do ano, o índice Dow Jones (o equivalente lá do Ibovespa aqui) subiu por mais de 10 por cento, e as ações que mais dispararam no primeiro dia pós-eleição – por 49 por cento – eram as da Corrections Corporation, a maior operadora de presídios privatizados nos EUA. Trump tem um lado populista. Tem um outro lado, sem dúvida maior, de Republicano tradicional, e os Republicanos tradicionais ralham constantemente contra governo e defendem a terceirização. Os Republicanos tradicionais defendem os interesses das pessoas mais abastadas e não as pessoas cujo maior patrimônio é a sua força braçal. Obviamente, os mais fieis eleitores do Trump não têm dinheiro para investir. Eles só têm dívidas. Os ganhos nas bolsas de valores estão passando por cima deles.
Não quero me demorar muito sobre as indicações do Trump para as grandes secretarias, que são iguais aos ministérios brasileiros. Graças ao JN, vocês já sabem, eu imagino, o essencial – que, à toda oportunidade, o galinheiro está sendo colocado nas mãos de uma raposa. Os dois últimos titulares do Departamento da Energia eram físicos renomados, um deles um ganhador do Prêmio Nobel em física. O nomeado do charlatão é um ex-governador do Texas que favorece, obviamente, as grandes empresas petroleiras do seu estado. Ele nega as mudanças climáticas. Quando ele se candidatou à Presidência quatro anos atrás, ele disse que queria abolir o Departamento da Energia. Para o papel principal do departamento, o desenvolvimento e controle de armas nucleares, ele não sabe absolutamente nada. Pode ser que saiba menos do que nada, ou seja, tenha uma cabeça cheia de ideias errôneas.
O nomeado para Attorney General, o equivalente do Ministro da Justiça aqui, é um racista mais ou menos assumido. Ele considera a NAACP, historicamente a mais importante ONG militando, lá, pelos direitos civis dos negros, “um grupo comunista” e ele disse uma vez – em tom, segundo ele, de brincadeira – que ele não via nenhum problema com o Ku Klux Klan, um grupo que milita, às vezes violentamente, pela supremacia branca, senão pelo fato que os “sócios” fumavam maconha. Ele considera as leis que protegem contra os crimes de ódio anticonstitucionais. A nomeada para o Departamento da Educação dá a impressão que eliminaria a educação pública, se pudesse, e privatizá-la. A escolha para a EPA, o IBAMA de lá, é mais um negador das mudanças climáticas e oposto às leis e aos regulamentos que protegem o ambiente. E assim por diante.
O novo Congresso, predominantemente Republicano, que, por uma peculiaridade americana, é empossado antes do Presidente, já começou o trabalho de sucatear o ACA, o Affordable Care Act, ou a Lei de Serviços de Saúde Acessíveis. Essa lei era um dos carros-chefe da legislação da saudosa era de Obama. A lei estendeu uma medida de cobertura médica a 20 milhões de pessoas que não a tinham antes. Uma redução no imposto de renda está na pauta. Ela será vendida ao público pelo alívio proporcionado à classe media mas os principais beneficiados serão os super-ricos. Já na segunda-feira, o primeiro dia em que o novo Congresso reuniu-se, uma comissão da Câmara votou para eliminar um escritório de ética que monitora a Câmara independentemente. Parecia ser uma manobra tomada emprestada desavergonhadamente do Congresso brasileiro. Foi frustrada. Os próprios líderes republicanos se deram conta que não seria uma boa jogada de relações públicas. Mas a farra só está começando.
Afortunadamente por Trump, os eleitores dele não prestam muita atenção aos detalhes. Tem-se a impressão até agora que eles estarão satisfeitos, pelo menos por um tempo, com vitórias puramente simbólicas. O Trump, por exemplo, prometeu durante a campanha que, quando ele ganhasse, as pessoas poderiam dizer Feliz Natal de novo. Nos anos recentes, a tendência entre as pessoas politicamente corretas nos EUA era de substituir Feliz Natal por Boas Festas – isso para não ofender nem aos judeus nem aos muçulmanos nem aos budistas nem aos zoroastrianos, que não comemoram Natal. Não havia lei que proibia uma pessoa de exprimir os seus votos para um feliz Natal. Era somente uma convenção entre uma facção altamente visível e audível da elite liberal de consciência avançada e delicada. Mas os Trumpistas gostaram do reconhecimento dos seus valores, orgulhosamente incorretos politicamente, mesmo se nada mudaria de verdade.
Ou para fazer cafuné no Trump – uma ideia um pouco assustadora, dado o penteado que ele usa – ou por uma coincidência de interesses totalmente conjuntural, algumas grandes corporações já avisaram que elas manterão alguns empregos nos EUA e não os transferirão para o México, como previamente anunciado. Não resolverá nada. Não será prático por muito tempo. As empresas do próprio Trump fabricam no exterior e importam. Mas, por enquanto, os eleitores dele parecem satisfeitos.
Quanto ao famoso muro, o “belo muro”, que o Trump prometeu erguer na fronteira com México para que os mexicanos não possam mais entrar ilegalmente e levar os empregos dos americanos natos, eu acho que até mesmo os apoiadores mais ferrenhos do Trump sabem que a grande maioria dos imigrantes ditos ilegais entram, de fato, legalmente e, não obstante um muro, continuariam a entrar legalmente e simplesmente permaneceriam no país além do prazo dos seus vistos. Em outras palavras, o muro também não resolveria nada. Eu acho que os apoiadores do Trump sabem isso. Eles gostavam da música e nada mais. E, de qualquer forma, quem, senão os mexicanos “ilegais”, construiriam esse muro? Faz anos que os americanos não praticam mais a arte da alvenaria, e os americanos também não gostam de trabalhar no sol quente do meio-dia. Trabalho de mexicanos.
Eu não gosto da palavra otário, e até agora a resisti. Mas vamos usá-la agora. Os fãs do Trump são otários? Pode ser. Mas pode ser também que eles sabem que são derrotados e que eles vão ficar derrotados, mas pelo menos podiam usar o Trump para dar um chute na traseira dos liberais que acham que eles, os Trumpistas, não são nada mais do que um bando de bárbaros racistas ou, como a Hillary disse durante a campanha, de “deploráveis”.
O próprio Trump, desde a eleição, vem governando, ou pré-governando, por Twitter, e muito dos seus tuites são, francamente, doidivanas. Ele ofende aos chineses por nada. (Lemos no The New York Times, quarta-feira, que a agência de notícias oficial chinesa acabara de avisar que a diplomacia “não é uma brincadeira de criança” e que o Twitter “não deveria virar um instrumento da política estrangeira.”) Provoca, desnecessariamente, os norte-coreanos. Lisonjeia o seu amigo Putin. E imagina se a Dona Dilma – que a paz de Alá a acompanhe – tivesse ficado acordada, noite adentro, por causa da sua irritação com Gustavo Mendes, que a imitava no YouTube. É mais ou menos isso que o Trump faz. O Trump é famosamente sensível. Alguém arranha o narcisismo dele, e ele responde ferozmente. Entre os muitos alvos dele: o ator Alec Baldwin, que o parodia, no programa Saturday Night Live, ou Sábado à noite ao vivo. O último tuite do Trump a respeito: “É um show totalmente parcial, tendencioso – absolutamente nada engraçado.” E isso, para Trump, era comedido, moderado, macio. Vamos esperar que alguém o contenha quando ele controlar não somente a sua conta do Twitter mas as bombas também.