Por Mark Zussman
As notícias saindo dos EUA estão cada vez mais esquisitas e perturbadoras.
Vocês já sabiam que o Presidente Eleito lá começou a fase atual da sua carreira política como líder dos chamados birthers? E o que é um birther? Em português, um nascimentador? Um nascimentista? A palavra deve ser feia em qualquer língua. Mas, porque o atual Presidente dos EUA, Barack Hussein Obama tinha um nome que, pelo padrão norteamericano de Smiths e Fords, soava estrangeiro, foi mais ou menos inevitável que os racistas e demagogos de plantão agarrariam a oportunidade de alegar que ele nem era americano de nascença. Ele deve ter nascido em algum lugar lá fora – e, portanto, porque a Constituição dos EUA requer que o Presidente nasça nos EUA, ele tinha assumido a Presidência ilegal e fraudulentamente. Na verdade, não houve nem uma sombra de uma prova que essa alegação fosse verídica.
O pai de Obama era queniano, sim. Mas a mãe dele, agora tão morta (de câncer) quanto o pai (devido a um acidente de automóvel), era americana (e, detalhe sem grande importância, branca). Os dois se conheceram numa aula de língua russa na Universidade do Havaí, onde Obama pai era o primeiro estudante africano, e o Barack nasceu, pouco mais de nove meses depois, em Honolulu. Mas os lunáticos da direita americana não podiam resistir á oportunidade de tentar desaboná-lo e de dificultar a sua Presidência, e o Trump era o mais vociferante e o mais estrepitoso de todos. Se comportava, por anos, como um cachorro com um osso. Quero dizer, ele não largou. Finalmente, ele forçou o Presidente a divulgar uma certidão de nascimento detalhada e, logo após, começou a insinuar que talvez tivesse sido forjada.
Durante a campanha recente, Trump vs. Hillary, Trump disse repetidas vezes que Obama, o principal patrocinador da Hillary, era o pior Presidente na história dos Estados Unidos, e os fanáticos dele soltavam grandes gargalhadas de prazer e gritavam as suas características palavras de (des)ordem.
Semana passada, Trump saiu de um encontro com Obama na Casa Branca em Washington dizendo que o encontro foi, para ele, “uma grande honra.” Disse que Obama é um “good man” – um bom homem, homem bonzinho. (Soa um pouco menos ridículo em inglês.) Disse: “Tenho muito respeito.” Disse: “Anseio muito para ter mais contato com o Presidente no futuro, incluindo [pedindo] conselhos.”
Pazes feitas? Cruel engano.
Eu não sei por que outros comentaristas não o observam, mas o próprio nome Trump não significa somente essa carta ou esse naipe que vence – em português, trunfa – no jogo de bridge, às vezes exatamente no preciso momento em que o adversário pensa que já ganhou, mas também é cognata com a palavra francesa “tromper”, que significa enganar. Mesmo aqui no Brasil, tal qual como nos países anglófonos, se usa a expressão francesa “trompe l’oeil”, que refere a uma ilusão artística que engana o olho. Quem lê Miriam Leitão já sabe que, apesar desse momento absurdo de abrandamento e cafunés tipo tenho-muito-respeito, o Trump já nomeou o mais virulento e cartunesco entre os negadores de mudanças climáticas como o novo chefe da Agência de Proteção Ambiental. O responsável pela seleção do novo pessoal do Departamento de Energia é um famigerado lobista pela indústria petroleira. Não, não é brincadeira, as raposas estão sendo escaladas para cuidar do galinheiro. Sério.
O novo Chief of Staff – equivalente ao Chefe da Casa Civil aqui no Brasil – será um apparatchik republicano, mais ou menos picolé de chuchu, que se dá bem com os republicanos enlouquecidos no Congresso. O chefe da estratégia, que também terá acesso direto ao Trump, é um cuspidor de fogo, notoriamente hostil a Europa, aos negros, aos muçulmanos, e aos judeus e com visual de uma dessas pessoas que, às 4h da madrugada, ainda está puxando a alavanca de um caça-níqueis num cassino da mais baixa categoria em Las Vegas. O nome dele é Steve Bannon. Quem entende inglês pode pesquisar. E vale a pena dar uma olhada no Google Imagens também. Estamos num novo mundo, pessoal.
O New York Times, semana passada, publicou uma lista de 20 atos legislativos, Executive Orders (o equivalente lá das Medidas Provisórias aqui) e políticas que, durante a campanha, o Trump prometeu extinguir. Uma pequena amostra: A proibição do porte de armas em escolas e bases militares. (Quem não passou uma grande parte da sua vida nos EUA nunca vai entender o entusiasmo de um grande número de americanos, sobre tudo em áreas rurais, pelo direito Constitucional de possuir e portar armas. Não vale a pena nem tentar.) O Acordo de Paris sobre as Mudanças Climáticas. O Ato Dodd-Frank, que, depois da crise financeira de 2008, impôs algumas restrições sobre a indústria financeira. A acolhida de refugiados sírios.
Sim, as luzes nos EUA estão sendo apagadas.
E, enquanto as luzes estão sendo apagadas, as facções e os indivíduos os mais primitivos e rudes do país estão saindo dos seus covis e se sentindo liberados para cometer agressões e crimes. (Em inglês, eu diria que essa camada se sente emboldened. Não encontro uma palavra exatamente equivalente em português.) Até uma amiga da minha mulher, Barbara, no estado relativamente civilizado de Nova Jersey, mencionou, no Facebook, que, ao decorrer de uma reunião, em sua cidadezinha, sobre uma inócua questão cívica, algo como a preservação de uma árvore doente numa praça pública, ela fez um pronunciamento que ela achava pouco contraverso. Um rapaz com o qual sempre tinha tido relações pacíficas no passado – e que ela nunca teria identificado como um eleitor do Trump – retrucou: Basta com a sua bosta liberal. Nós ganhamos. Esse liberalismo puta merda acabou.
Caramba, o gênio do mal está fora da garrafa.
Nos rincões e nos grotões dos estados no sul do país e no dito Cinturão da Ferrugem, onde as velhas fábricas fecharam e a velha classe média de operários está em apuros, a situação está pior. (Sim, por um tempo, muitos operários nos EUA – pessoas que faziam trabalho braçal – eram da classe média.) Um dos incidentes que mais me chocou ocorreu no campus da Universidade Baylor em Waco, Texas. Uma estudante, Natasha Nkhama, de origem zambiana, foi empurrada para além do meio-fio por um outro estudante que vociferou, “Crioulos fora da calçada!” Um terceiro estudante interveio. O agressor explicou: “Eu só estou tentando fazer os Estados Unidos grandes de novo.” “Fazer os Estados Unidos grandes de novo” era o lema principal da campanha do agora Presidente Eleito.
Mas, olham, nós temos, nós, humanos, uma capacidade enorme para a histeria. Percebemos uma manchinha nas costas de uma mão. De repente, estamos morrendo de câncer. Aparecem algumas suásticas aqui e acolá num país de 320 milhões de pessoas, algumas pessoas gritam injúrias racistas ou anti-semitas ou xenofóbicas. De repente, os EUA, com as suas tradições democráticas e de tolerância, estão seguindo o mesmo caminho que a Alemanha nazista explorava na década de 30, e daqui a pouco as camisas pardas e todo tipo de brutamontes e capanga estarão nas ruas à procura dos egoístas e individualistas que não querem se envolver na bandeira e fazer as suas saudações de braço estendido. Os articulistas nos EUA sempre gostavam de falar da “decência básica” do povo americano. Mas na verdade os sinais lá nos EUA são alarmantes, e os desdobramentos do incidente na Universidade Baylor são contraditórios.
Claro, as autoridades da universidade condenaram a agressão e, muito mais importante, algumas centenas de estudantes de bem, mais o presidente da universidade, compareceram para escoltar a vítima de uma aula para outra.
Outros estudantes participaram numa contra-manifestação em apoio à proposta que o Candidato Trump fez para construir um “belo muro” na fronteira entre Estados Unidos e México para que os mexicanos não mais entrem.
Vamos continuar vigiando.
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Quem não leu meu comentário da semana passado o encontrará na página a baixo
https://prensadebabel.com.br/index.php/2016/11/11/escravidao-vai-voltar-nos-eua-ou-so-esse-muro