No Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, encontra-se uma documentação para lá de interessante, não apenas para o pesquisador acadêmico, mas para o cidadão comum. São os documentos da Casa Detenção da Corte e do Distrito Federal. Era para esta Casa de Detenção que iam todos aqueles que a Polícia do Rio de Janeiro colocava as mãos: o vagabundo, o punguista, o ébrio, o português e o brasileiro, o preto, o branco e o pardo.
Os registros feitos pela Casa de Detenção dão um retrato em 3×4 do que era o “povo “ do Rio de Janeiro, desde o Império até as primeiras décadas do século XX, época em que a cidade ainda era capital da República. Quando alguém era preso, seu nome, endereço, profissão, cor de cabelo e dos olhos e mesmo a sua roupa eram anotados diligentemente pelo escrivão e delegados de plantão.
Mathias ( vamos chamá-lo assim) deu entrada na Casa de Detenção em um distante 15 de janeiro de 1883. Disse às autoridades que era “Caixeiro” e que morava na Rua 7 de Setembro. Como de costume, saiu com os amigos para beber e conversar. Terminou preso. Este é apenas um exemplo dos muitos que vemos nestes documentos. Um após outro registro, nos defrontamos com trabalhadores presos pelos mais diversos motivos. Não é o caso aqui de especularmos da “justeza” ou não daquelas prisões, mas uma coisa podemos inferir: é possível identificar padrões de comportamento não apenas dos “suspeitos”, como também da Polícia.
Alguns destes casos me chamaram a atenção: eram aquelas prisões realizadas quando a Polícia entrava em “casas de mistificação”. Bem, por “mistificação”, entenda-se o “exercício ilegal da medicina” ou o “curandeirismo”. Em outras palavras, era quando a Polícia do Rio de Janeiro entrava em terreiros e realizava prisões, alegando que ali estava sendo realizada de maneira ilegal a medicina. Não era segredo para ninguém no início do século XX, que a capital da República era lotada de casas deste tipo, com uma grande clientela. Cronistas como João do Rio e Lima Barreto gastaram muita tinta descrevendo a popularidade que Mães e Pais de Santo possuíam no Rio de Janeiro.
Aqueles documentos mostram também um aspecto muito importante na história daquela cidade. Trata-se da constante luta que a população da cidade travou e de certa maneira ainda trava, no sentido de manter uma cultura com características muito diferentes daquilo que a elite considerava como ‘apropriado”.
Pensem em uma cidade que até meados do século XIX, possuía quase 40% de sua população constituída de escravos, em sua maioria de origem africana, falando toda sorte de dialetos, ao mesmo tempo em que aprendiam aos trancos e barrancos, o português. Agora junte a isso, o grande numero de trabalhadores portugueses, oriundos principalmente da região do Porto. Coloque também os trabalhadores brasileiros vindos de regiões tão distantes quanto o Pará ou o Rio Grande do Sul.
Capoeira, Candomblé, Samba, comida de rua tudo isso e muito mais foi gestado neste ambiente em que a cidade do Rio de Janeiro inaugurou o século XX com mais de milhão de habitantes, em sua grande maioria, pobres, não brancos e analfabetos. De certa maneira, a cidade foi é, e talvez será por muito tempo, um gigantesco laboratório humano a céu aberto. Machado de Assis tinha clareza disso. Lima Barreto a mesma coisa. Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Morais e toda uma corte de escritores, jornalistas e compositores valeram-se da experiência de viver nesta cidade, como sua principal fonte de inspiração.
Neste momento, faço uma mudança algo brusca no desenvolvimento do tema e coloco na roda a polêmica criada pelo controvertido ato do Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, de reduzir os gastos do Poder Público com o Carnaval do ano vindouro. Tecnicamente, a argumentação do alcaide é perfeita: em época de vacas magras, vamos priorizar o gasto com o essencial. No entanto, esta é somente uma parte da história e com certeza, não é a parte maior.
Olhando a coisa em perspectiva, podemos colocar esta medida como mais uma, em uma longa história de ações, cuja finalidade sempre foi, de uma maneira ou de outra, enquadrar esta cultura popular. Este “enquadramento” passou por uma série de fases. Os documentos que mencionei mais acima, pertencem a uma época em que este padrão de enquadramento passava pela repressão pura e simples. Cadeia, ponto final.
Em outro momento, nas décadas de 30 e 40, durante o governo Vargas, este enquadramento mudou de figura. As manifestações populares, como as escolas de samba, passaram a ser permitidas, desde que intermediadas pelo Estado. Era praxe naquela época, a Polícia do Distrito Federal exigir que toda agremiação carnavalesca, escola de samba ou bloco de rua, tivessem o nome dos fundadores registrado nos arquivos da Polícia. Ou seja, não bastava ser “bamba no Samba”, tinha que ter o “Nada Consta” na folha corrida, caso contrário…
A medida do atual Prefeito pode ser entendida como fazendo parte de um outro momento: agora, está fora de questão prender. Tutelar também já é página virada. A cultura popular pode ser exposta de uma maneira aparentemente inofensiva. Para quê prender o capoeira, se ele pode fazer um show para o turista?
Aluísio de Azevedo, quando escreveu “O Cortiço”, descreveu uma cena em que a Polícia invadia um dos muitos cortiços da então bucólica e rural paisagem de Botafogo. Enquanto o pau comia entre as partes, anotava ele imparcial : “aquilo era uma questão de ódio velho”.