Por Mark Zussman
O patife presidente dos EUA entrou no seu cargo nas costas principalmente dos brancos da classe média e média baixa que ainda se consideram os verdadeiros donos do país, apesar da sua situação cada vez mais marginalizada em nosso mundo cada vez mais globalizado. Essas são as pessoas cujos pais e avós (ou, mais provavelmente, avós e bisavós), nas décadas de 50 e 60, ganharam bons salários como operários na indústria automotiva, nos setores do carvão e do aço, como intermediários de todo tipo. Esses pais e avós e bisavós das décadas de 50 e 60 tinham recursos para pagarem a entrada de uma casa decente particular, para sempre comprarem um carro zero (e talvez um segundo carro ou um picape), para nunca passarem fome. As gerações de agora estão encontrando trabalho, não em todos os casos, obviamente, mas tipicamente, em restaurantes de comida rápida ou não estão encontrando trabalho em lugar nenhum e, consistente com o modelo brasileiro mas inconsistente com o modelo desenvolvido nos EUA durante as décadas da prosperidade geral, instalando-se – por falta de recursos – em quartos vagos nas casas dos seus próprios pais ou dos seus filhos. Em muitos casos, a geração mais nova nunca consegue se estabelecer firmemente no mundo de trabalho e, portanto, nunca sai do ninho paternal.
Mas as pessoas convulsionadas pela globalização não são as únicas que colocaram o aventureiro Trump onde está. Muitos Republicanos tradicionais votaram nele, e esses Republicanos tradicionais são as pessoas, em geral prósperas, e em alguns casos extremamente prósperas, que favorecem um capitalismo com viés para o selvagem; isto é, um capitalismo que não exclui os vários aspectos da globalização pelos quais os seus parceiros na eleição de Trump se sentem tão lesados. Esses Republicanos tradicionais não se opõem, por exemplo, aos acordos internacionais e à estruturação tributária que permitem a exploração de uma mão de obra mais barata do que a americana em costas distantes; pelo contrário, são eles que defendem essas providências. Também não se opõem ferrenhamente aos imigrantes, legais e ilegais, que supostamente roubam os empregos das velhas classes média e média baixa brancas no próprio solo americano e também, na visão dos antediluvianos, diluem a boa e velha cultura americana de hambúrgueres e Coca-Cola e Jack Daniels com os seus hábitos e costumes alienígenas e talvez anti-higiênicos e essas línguas estrangeiras que eles têm a cara de pau de falar até em lugares públicos. O por quê: (1) Sem os engenheiros estrangeiros – brasileiros, argentinos, chineses e russos, com certeza, sim, mas sobre tudo, a falar a verdade, indianos – os gigantes do Vale do Silício simplesmente não existiriam na forma que os conhecemos. (2) Os Republicanos tradicionais, assim como as elites Democratas, precisam de babás e jardineiros, e os mexicanos e os filipinos servem tão bem, se não melhor, do que os americanos da gema (e aceitam salários menores e não se queixam tanto). (3) Os Republicanos tradicionais, assim como as elites Democratas, não se sentem tão ameaçados por um turbante sikh ou um cachecol na cabeça de uma mulher aqui e acolá e, além do mais, as elites gostam de sair às vezes para um curry ou um mezze árabe ou, se houvesse uma comunidade de brasileiros nas imediações, por que não experimentarem uma dessas feijoleidos – ou como se chama mesmo?
Em algumas áreas, os interesses, verdadeiros ou às vezes totalmente imaginários, das duas superclasses em questão se sobrepunham ou coincidiam, mas essas duas superclasses nunca constituíram uma coalizão no sentido de que elas, ou os seus representantes, se sentassem numa mesa,cada uma defendesse a sua posição, cada uma cedesse um pouco, e Trump por sua vez fosse aos palanques com uma plataforma de compromisso. Durante a campanha, a retórica de Trump foi voltada quase em sua íntegra para o grupo raivoso e ressentido que se sente despejado do seu próprio lar a favor de estranhos. Como candidato, Trump hostilizou o livre comércio, hostilizou os imigrantes, ofendeu mulheres, ofendeu e apavorou as minorias negra e hispana, e até arrasou os príncipes e barões da Wall Street que ganhavam fortunas pela manipulação dos mercados financeiros sem, segundo Trump, nada produzirem de concreto e que também aproveitavam de lacunas e escapatórias no código tributário que ele, Trump, ia fechar – porque ele, Trump, sabia onde essas escapatórias se encontravam.
Os Republicanos tradicionais, que incluíam a grande maioria dos príncipes e barões da Wall Street, só tinham, finalmente, escolhas desagradáveis. (1) Votar em Hillary (mas eles odiavam Hillary). (2) Passar o dia das eleições numa praia caribenha. (O voto nos EUA não é obrigatório.) (3) Votar em Trump como o menor de dois males. (Pelo menos Trump não passaria os seus dias bolando novos regulamentos em defesa do meio ambiente, do consumidor, e do trabalhador como sempre fazem os Democratas; todas essas medidas só aumentam os custos de fazer negócios.) (4) Votar em Trump pelas promessas que, se cumpridas, os favoreceriam tanto quanto favoreceriam os seus partidários os mais ardentes – e que, de uma forma geral, coincidiam com a ideologia dos Republicanos tradicionais. (Entre essas promessas: tributação reduzida não somente para a classe média mas para todos, um governo mais enxuto que interferiria menos com as liberdades econômicas antigamente consagradas, cortes em programas sociais dispendiosos que por enquanto favoreciam as pessoas mais necessitadas mas sem nunca acabarem com a pobreza; pelo contrário, só, na visão deles, a perpetuavam.) (5) Votar em Trump por um ou mais dos motivos precedentes mas também na presunção que, uma vez eleito, ele se apoiaria inevitavelmente em assessores que o orientaria para abandonar o seu populismo exaltado e adotar um conjunto de programas mais reconhecivelmente Republicano-tradicional e, nesse sentido, mais favoráveis a eles.
E agora, nesta última semana do mês de abril, estamos chegando ao fim dos primeiros cem dias do mandato do nosso aventureiro, ou seja, ao fim da suposta lua de mel em que qualquer novo presidente, Democrata ou Republicano, começa a realizar as promessas aos seus eleitores. Cujos interesses ele está servindo? Os dos despojados, essas pessoas raivosas e ressentidas, lesadas pela globalização, temendo ainda pior, e por isso os principais responsáveis por sua ascensão tão rápida e inesperada? Ou outros?
Os ressentidos e raivosos que ficaram apaixonadas pelo nosso vendedor de poções mágicas estão, na verdade, numa sinuca – e uma sinuca grave. (Vejo que vou demorar um pouco para chegar à resposta à minha própria pergunta sobre os interesses que Trump serve.) E a sinuca não decorre só da concorrência dos mexicanos e dos asiáticos capazes de fabricar os mesmos automóveis e os mesmos laptops por salários menores que, por sua vez, retornam lucros maiores às grandes corporações sem aumentarem os custos ao consumidor nas lojas e nas concessionárias. Mesmo se esses mexicanos e asiáticos não tomassem uma grande parte dos empregos que eram antigamente americanos, a informatização e a robotização acabariam com esses empregos. Mesmo no México e na Ásia, os robôs estão substituindo a mão de obra humana. Os robôs e os computadores trabalham por menos. Não descansam. Não reclamam. Não entram com ações judiciárias. A sinuca, em outras palavras, não é conjuntural. Não é um efeito passageiro de um ciclo econômico. É, antes, um efeito colateral do velho sonho de um mundo em que as máquinas fazem todo o trabalho e as pessoas aproveitam de um lazer ilimitado. E a situação vai piorar aceleradamente. Os caminhões sem motorista já são inevitáveis, e aí vai mais uma profissão para pessoas sem o ensino secundário completo. Nos países chamados avançados, cada vez mais pessoas vão se encontrar, simplesmente, sem trabalho digno e, como era num passado relativamente recente, adequadamente remunerativo.
Com certeza, tem uma solução. Ou uma espécie de solução. Os governos, americano e outros, poderão providenciar algum tipo de rendimento garantido mínimo, e assim as pessoas redundantes como trabalhadores e produtores continuarão a participar na farra de consumismo dos bens e serviços que enriquecerá ainda mais os donos dos robôs industriais e os grandes sistemas de computadores assim como os profissionais especializados que também continuarão a trabalhar. E essas pessoas essenciais como consumidores mais totalmente inúteis nos lugares de trabalho só terão de decidir o que fazerem com as suas 24 horas vagas por dia. Alguns lerão Proust e Shakespeare. Eu, pessoalmente, não posso imaginar uma sina mais agradável. Outros passarão os seus dias jogando videogames, vendo novelas na televisão e se drogando – pelo menos até que uma nova leva de filósofos e cientistas sociais surja para decidir as suas vidas e a sua liberdade para eles.
Mas não é assim que os apoiadores mais entusiastas de Trump avaliam a sua situação e não é um salário garantido que eles pediam aos candidatos, Trump ou Hillary, durante a campanha. Exceto em raros casos, a idéia nem veio à mente dos eleitores. Os valores dos eleitores de Trump em particular são em grande parte os valores que ainda estavam vivos no meio do Século XX mas com raízes em solo de cem anos antes quando o grande filósofo (pseudo-filósofo?) americano Emerson (Ralph Waldo) pregava as virtudes irmãs de self-reliance (auto-suficiência, autonomia), individualism (inteligível sem tradução) e independence (idem).
Esses eleitores de Trump não querem receber caridade ou esmolas, e eles são ainda mais críticos do que os Republicanos tradicionais de como o governo, na visão deles, mima, na visão deles, milhões de negros e outros alienígenas e outros estranhos que, mais uma vez na visão deles, não querem trabalhar. E eles desdenham as pessoas que aceitam o que eles chamam de a caridade do governo. Eles acreditam, esses eleitores de Trump, nas suas próprias capacidades. E eles acreditam, como numa fé religiosa, no que eles chamam de a responsabilidade pessoal, que é uma reinterpretação relativamente recente da velha tríade emersoniana de self-reliance, individualism e independence.
Não querem caridade, não. Querem empregos. Além do mais, eles não têm inveja dos verdadeiros ricos. Talvez fosse melhor se tivessem. Haveria uma revolução, ou no mínimo os ultra-ricos começariam a pagar uma quota-parte dos impostos. Eles estão às turras com os super-ricos somente porque, na visão deles, a ganância dos super-ricos prejudicam as suas chances. Ou seja, não pedem favores especiais. Não querem nem mansões nem mais e mais lazer. Só querem o que nós, em inglês chamamos de um level playing field, ou seja, uma igualdade nas condições de concorrência. E Trump, pelas aparências, compartilhava a visão dessas pessoas. Trump ia fazer as coisas bem . . . e justas.
Vamos, então, mais uma vez voltar à pergunta original? Trump está servindo os interesses dessas pessoas que se sentem tão injustiçadas? Ou está servindo outros interesses?
Complicado. Trump, com certeza, está continuando a servir os interesses psicológicos e emocionais dos seus principais eleitores. Trump continua a comprar brigas com os mexicanos e com os europeus e recentemente até com os canadenses – a respeito da madeira serrada que o Canadá exporta a preços, segundo Trump, desleais. Mas como esse novo conflito com o Canadá vai ajudar os eleitores de Trump mais do que prejudicará a indústria de construção de habitações e, portanto, os eleitores de Trump como consumidores, eu não tenho a menor idéia. Sempre tem ganhadores e perdedores quando as regras mudam, e neste caso só os economistas especializados na área vão conseguir discriminar.
Esporadicamente, Trump tenta barrar a entrada no país de cidadãos de países predominantemente islâmicos e assim cumprir a promessa de tornar os EUA mais seguros. Os tribunais vêm barrando esse caminho de Trump. Ele continua falando desse muro – “grande e belo” – que seguraria a fronteira com México, mas não somente os Democratas resistem. Os Republicanos tradicionais no Congresso também resistem. (Como regra geral, esses Republicanos tradicionais no Congresso não gostam de rombos orçamentários mesmo para custear obras de infraestrutura absolutamente necessárias em pontes e estradas e aeroportos, quanto mais um absurdo como o muro Trump; eles preferem que cada um retenha o seu dinheiro para gastá-lo como quiser em carros beberrões e freezers super-grandes.)
Durante o período de transição entre as eleições de novembro e a posse em janeiro, Trump alardeou uma conversa que tinha com a Carrier Corporation, um fabricante de aparelhos e sistemas de ar condicionado, que, segundo ele, resultou numa decisão por Carrier de não deslocar mais ou menos 7-800 empregos para além-fronteira em Monterrey, México. (O número oferecido por Trump foi maior, mas mesmo quando ele encontre em si o foco para aprender um fato, ele exagera ou mente.) Alega ter tido outras vitórias do mesmo tipo. Na indústria de carvão, por exemplo. Mas a verdadeira história é muito mais complexa – e desanimadora. Os empregos supostamente salvos na Carrier se encontravam no estado de Indiana, onde Mike Pence, o vice de Trump, ainda era governador. Para não deslocarem os empregos em questão, a Carrier não foi achacada brutalmente. A Carrier recebeu $7 milhões em créditos fiscais, ou seja, $8.750 por emprego. E a migração de empregos continua para o México, e o peso mexicano já voltou ao patamar onde estava antes das eleições. Mesmo a Carrier continua a exportar empregos. (Só não exporta os 7-800 que recebeu para manter no Indiana.) Paul Krugman, o Nobel em econômica que escreve uma coluna no The New York Times, disse: “Se Trump efetuasse um negócio como o da Carrier uma vez por semana durante os próximos quatro anos, ele poderia trazer de volta 4% dos empregos no setor industrial perdidos desde 2000.”
Está ficando cada vez mais claro que as pessoas que mais se empolgaram por Trump vão ser traídas mais uma vez – ou por promessas falsas ou por promessas cumpridas que não fazem bulhufas para estancar a sangria de que elas sofrem.
Steve Bannon, o assessor de Trump que mais representa os interesses dos deslocados, está sendo cada vez mais marginalizado. Mas sabe-se lá quais os interesses que Bannon representa realmente. É uma figura esdrúxula. Talvez seja o diabo mesmo. À mesma hora, os príncipes e barões da Wall Street e os bilionários em geral estão chegando a ocupar todas as posições ao pé do ouvido do aventureiro. Steve Mnuchin na Secretária de Fazenda. Betsy DeVos na Secretária de Educação. Wilbur Ross como Secretário de Comércio. Gary Cohn como principal consultor econômico. É só dar uma olhada nas propostas lançadas na quarta-feira para a reforma tributária. Para a classe média, migalhas. Para os super-ricos, mais riquezas.
O próprio presidente e o clã dele estão lucrando para caramba, e o mau cheiro de corrupção está ficando quase insuportável. Coisa de uma republiqueta de banana. Sim, uma republiqueta de banana