O canto do galo anunciava que o amanhecer estava se aproximando. Era o despertador da época. Do quarto ouvia-se os passos singelos na cozinha, que seguiam em direção ao fogão à lenha, indícios de que um café fresquinho estava para ser coado em um filtro de pano. O dia começava bem cedinho no balneário buziano, que ainda pertencia à Cabo Frio, para as caiçaras, mulheres de pescadores que cuidavam da casa e dos filhos enquanto seus maridos saíam para pescar ou caçar. Estamos na década de 1960 e a vila de pescadores ainda não havia entrado para a lista dos destinos mais famosos do mundo.
À época, as tarefas simples do dia a dia, que hoje facilmente são feitas com um abrir de uma torneira, eram inexistentes. Realizar atividades como tomar banho, lavar louça e/ou roupa e até cozinhar requeria esforço. E coloca esforço nisso! A água não era encanada e era preciso ir a um poço mais próximo de casa para buscá-la, e o transporte era o próprio corpo humano: “lata d’água na cabeça”, como diz a canção interpretada pela voz da saudosa cantora Marlene.
A vida simples, e cheia de memória afetiva foi contada pelas mulheres, em uma tarde fresca e ensolarada, na Praça do Poço da Bomba, no Centro de Búzios. Esse poço é um dos mais famosos, que ganhou até uma estátua em homenagem simbólica às lavadeiras. Na maioria das vezes eram elas que buscavam água para que pudessem realizar os seus afazeres domésticos. O bate-papo descontraído em um dos bancos da praça rendeu boas risadas e muitas histórias.
O dia a dia nos poços
A rotina de Sonia Maria Santos, hoje com 69 anos, era como a de muitas naquela época. Nascida em uma família de 14 irmãos, nove mulheres e cinco homens, as tarefas eram divididas. Ela e suas irmãs revezavam nos afazeres domésticos, incluindo ir ao poço lavar roupas.
“Cada dia da semana uma de nós vinha até o Poço da Bomba. Eu morava na Casa da Farinha (onde hoje funciona o Fórum) e trazia as trouxas de roupa em uma bacia de alumínio na cabeça e o meu almoço, porque a gente passava o dia aqui. Quando eu chegava logo ensaboava a roupa com sabão em pedra e colocava para quarar (processo de deixar a roupa exposta ao sol para clarear). Enquanto quarava, a gente almoçava, e depois do almoço enxaguava tudo e colocava nas árvores para secar. O varal eram os pés de aroeira e os de pitanga. Enquanto ia secando, a gente sentava embaixo da sombra para pegar uma fresquinha, depois recolhia a roupa, dobrava e ia embora pra casa”, contou a ex-lavadeira complementando que havia revezamento entre seus irmãos para lavar roupas e pegar água dos poços, em recipientes como latas ou barris.
Rosenira Alves, de 70 anos, lembrou de um dos momentos marcantes para ela, a hora do almoço. “Na hora (do almoço) eram cerca 20 mulheres, todo mundo compartilhando a comida, feita no fogão a lenha. Uma mais gostosa que a outra!”, destacou. A ex-lavadeira ainda trouxe à memória as cantorias enquanto a roupa era lavada. “Tinha uma senhora chamada Nair, ela cantava cada música linda e todo mundo cantava com ela, enquanto lavava a roupa. Mesmo não sendo afinada, a gente cantava”, brincou.
A ida ao poço não era só trabalho, Vastir Santos, de 72 anos, contou que ela, assim como as outras pré-adolescentes que iam lavar ou aguardar suas mães, com 12, 13 anos de idade, também se divertiam. “Eu lembro que tinha muito boi, e a gente pegava um pano vermelho pra provocar eles. Eles corriam atrás da gente, a gente corria para subir nas árvores, era uma diversão só”, contou ela das travessuras que participava.
Além de fonte desse recurso natural tão importante – a água, nos poços também aconteciam os encontros sociais das lavadeiras. Elas não só buscavam água e lavavam roupa, como também colocavam a conversa em dia. “Tudo que a gente queria saber que estivesse acontecendo em Búzios, era só vir no poço. Era fofoca? Não, era o nosso Facebook da época”, brincou Sarah Santos, de 61 anos.
E há também quem paquerava, como Creusa Santos, de 72 anos. Ela encontrou literalmente a metade da laranja no Poço da Bomba. “Eu tinha 17 anos e meu, agora marido, caçava (animais) nesses matos. Eu estava sentada na grama, aí ele veio do mato e tinha uma laranja que a gente trouxe para merenda, e ele pediu um pedaço da laranja. Aí eu deixei e ele ficou puxando conversa. O pai dele já ficava atiçando pra a gente namorar, mas eu nunca liguei e nem levei a sério, mas depois daquele dia pegou”, contou ela aos risos. “Ficamos dois anos namorando, um ano noiva e somos casados até hoje, temos cinco filhos e dez netos. Ele foi o meu primeiro namorado”, partilhou.
Lucia Almeida, tem 58 anos, já pegou uma Búzios mais badalada, quando o turismo foi intensificado. A família dela morava em Cabo Frio, mas tinha uma loja na Rua Turíbio de Farias de produtos praianos, como chapéu de palha, sandália trançada, bolsas, entre outros objetos. “A vida era simples e as pessoas eram muito próximas. O que eu achava mais interessante era quando eu entrava no ônibus e ouvia as pessoas conversando, contando como tinha sido no poço, na pescaria…É importante resgatar essa história”, destacou a professora.
Sobre os poços
Os reservatórios eram nomeados conforme a localização ou nomes dos proprietários da terra onde eram cavados, como o Poço de Seu Jorge, por exemplo. Na cidade ainda existem poços da década 50, 60 e também da época da escravidão, hoje desativados, ou em baixa operação. Alguns moradores acreditam que o poço da Ferradura tinha a melhor água.
Em relação ao Poço da Bomba, Sarah Santos, contou que não era como é hoje em dia. Ela explicou que era mais baixo e que a ampliação das paredes veio com a obra de preservação da memória feita pelo ex-prefeito Mirinho Braga. A ex-lavadeira disse também que na década de 50 não tinha onde pegar água e a população estava crescendo. Então, o vereador Antônio Alípio percebendo isso intermediou politicamente para que o poço fosse construído. “O poço deu muito certo. Era uma água ótima e boa pra tudo, e virou o queridinho das lavadeiras do Centro e da Armação”.
Outro detalhe importante é que o nome “bomba” é porque algumas pessoas traziam os barris grandes nas carroças e colocavam uma bomba para bombear a água até os recipientes, tudo de forma manual, mas que facilitava a vida dos moradores. Nessa época, algumas famílias coletavam água da chuva em cisternas e usavam para beber, mas para os afazeres continuaram pegando nos poços. Há relatos de que haviam duas cisternas grandes, localizadas na área onde hoje é a Rua das Pedras, que eram abastecidas por caminhões pipa.
A chegada da água
O serviço de abastecimento de água chegou a Búzios na década de 70, mas ainda não estava nas torneiras. Segundo a Companhia Estadual de Água e Esgoto (CEDAE), que atendeu a população até meados de 1998, “havia uma caixa d’água comunitária, provavelmente abastecida por caminhão pipa”. Ainda de acordo com a companhia, “o sistema de abastecimento foi implantado efetivamente por volta de 1975 (ano de fundação da própria Cedae)”.
Os moradores relatam que a caixa d’água ficava na Praça Santos Dumont, e quando a empresa assumiu o serviço foi um dia de muita festa. “Quando abriu o registro na inauguração, a nossa ex-professora Francisca fez uma festa, se jogou na frente do jato de água, foi um momento muito especial para Búzios”, contou Sônia.
A Cedae explicou que “ao longo dos anos, com o crescimento habitacional do município, principalmente nos períodos de alta temporada, os sistema passou por algumas ampliações de redes troncos de distribuição, elevatórias de água tratada etc., e a caixa d’água foi incorporada ao sistema, sendo interligada à rede de abastecimento da Companhia”.
Nos últimos anos do período de concessão da CEDAE, os municípios da região viram o serviço de saneamento se deteriorando, chegando a uma situação precária com falta de água generalizada e serviços de esgotamento sanitário inexistentes. Segundo o Plano de Saneamento, divulgado em Boletim Oficial, Nº 731 – 25 de dezembro de 2015, “para superar estes problemas, o Governo Estadual, controlador da CEDAE, lançou em dezembro de 1996 uma licitação pública, com o objetivo de conceder os serviços na região dos Lagos-Oeste, que corresponde aos municípios de Araruama, Silva Jardim e Saquarema e na região dos Lagos-Leste, que corresponde aos municípios de Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia, em pacotes separados”.
Prolagos assume o abastecimento
Os serviços de água e esgoto da Prolagos nas cidades de Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia, iniciaram em 1998. Segundo a empresa, ao longo de 24 anos de atuação, a concessionária já investiu mais de R$1,4 bilhão, representando mais que o dobro de investimentos realizados por habitante do que a média nacional, de acordo com o Instituto Trata Brasil. Neste período, a concessionária triplicou o fornecimento de água potável, passando de 30% para 98%, e saltou 0 para 80% o tratamento do esgoto.
Se tratando diretamente de Búzios, a empresa explicou que acompanha a expansão de novos bairros e loteamentos, constantemente, e executa obras para ampliar a cobertura de água tratada como, por exemplo, em Baía Formosa, onde foram implantados neste ano, sete quilômetros de extensão de rede de água.
Em relação à capacidade, a companhia explicou que por dia a cidade recebe em média 17 milhões de litros de água tratada. A operação é monitorada 24 horas, em tempo real, pelo Centro de Controle Operacional, que dispõe de históricos de parâmetros operacionais das redes como vazão, pressão, consumo de energia e níveis de reservatórios, podendo realizar a distribuição da água de acordo com a necessidade de cada município.
Como na alta temporada Búzios atrai milhares de turistas, o local exige uma operação diferenciada para abastecer os imóveis, com acompanhamento permanente dos hotéis, pousadas, restaurantes e unidades de saúde. Além disso, a cada verão, a Prolagos realiza investimentos na expansão da capacidade de distribuição, com implantação de estações de bombeamento que ajudam a impulsionar a água para as localidades mais altas e distantes.
Preservação da história Caiçara
A história das caiçaras está sendo resgatada pela Associação das Mulheres Caiçaras Buzianas, que tem feito um trabalho de preservação e disseminação dessa memória cultural tão presente no balneário por décadas. Segundo Leni Santos, presidente da Associação, o movimento nasceu através de uma revolta de ver que a história de Búzios estava resumida somente à chegada da Brigitte Bardot, em 1964.
“A gente sentava à beira do deck e ouvia falando uma história que não era a nossa história. A gente sabe que Brigitte Bardot teve seu papel importante para Búzios, mas só que antes dela a gente tinha uma aldeia de pescadores que merece ser contada. A ideia surgiu através de um pensamento de fazer valer a nossa verdadeira história”, destacou ela, ressaltando que o movimento nasceu em março de 2021 e que, desde então, tem feito um trabalho intenso para que as pessoas conheçam Búzios antes da propagação da chegada da atriz francesa
Leni não chegou a lavar roupa nos poços, mas levou muita comida para suas irmãs. A Associação foi iniciativa dela e começou com 15 integrantes, hoje já são 70. Entre suas ações promover a cultura buziana, a contação de história vivenciada pelas próprias caiçaras, a preparação de comidas típicas, artesanato e confecção de redes de pesca artesanal.
“O objetivo é ser reconhecida pela autonomia, respeito, diversidade e principalmente pelas lutas de seus direitos, a fim de divulgar a tradição e resgatar a nossa cultura”, ressaltou Leni sobre aonde o movimento quer chegar.
Assim como o Poço da Bomba se tornou um ponto cultural de Búzios, a Associação deseja que de Poço de Seu Jorge também ganhe a mesma notoriedade para que haja uma preservação da memória caiçara.
Mapeamento dos poços pela Prefeitura
O secretário de Cultura e Patrimônio Histórico de Búzios, Romano Lorenzi, contou que a Secretaria está fazendo o mapeamento de todos os poços do município, não só da parte peninsular (da Barrica, da Bomba, Seu Jorge, da Bomba, Tamarineira, do Anil, do Amor, do Arroz, do Tatu, entre outros), como de toda a cidade, incluindo o Quilombo da Rasa, do Quilombo da Baía Formosa, Poço de Pedra e da Fazenda Cunha Bueno.
“Existe todo um trabalho de pesquisa da Secretaria em relação aos poços. Está em discussão um Projeto de Lei de Tombamento dos Bens Materiais e Imateriais do município, com a presença do Conselho de Patrimônio Histórico e da sociedade civil. A proposta é da Secretaria de Cultura. Nós queremos ter um amparo para poder tombar os prédios históricos como patrimônio, e isso inclui o entorno dos poços de forma que se tornem equipamentos culturais, locais de lazer, de oficinas culturais, de roda de conversas, essa é a nossa proposta”, explicou o secretário.
Romano destacou o carinho pelo movimento Caiçara. “Eu acho a iniciativa das caiçaras maravilhosa e a gente está na luta junto com elas. É um coletivo que me gera muito orgulho e muita alegria de como tem trabalhado, crescido e desempenhado bem o papel de salvaguarda da nossa história e da nossa memória”.
Em todas as ações, o movimento leva fotos de parentes e amigos que já morreram, mas que tiveram grandes representatividade na cultura caiçara como forma de homenagem. O grupo também tem uma trilha sonora oficial denominada “Caiçara”, música escrita por Mateus Santos e interpretada na voz de Leny Moraes e violão de Renato Arpoador.
Construção Coletiva do material apresentado – Nícia Carvalho, Monique Gonçalves e Matheus Coutinho