Búzios 26 de março de 2020-03-25
Não sei quanto ao resto da cidade – estou respeitando a determinação de não circular pelas ruas sem necessidade – mas aqui no meu quadrilátero o silêncio impera. Mesmo durante o dia é difícil ver alguém caminhando sem necessidade. Apenas uns poucos moradores de rua que restaram e dois ou três traficantes de drogas. Esses não somem nem em época de pandemia. Vez por outra passa um taxi, um caminhão de entregas e algum carro particular. Mas logo somem e o sossego toma conta de tudo.
Nas noites a solidão das ruas é ainda maior. Nem táxi, nem carros particulares e muito menos caminhões de entrega. Só alguns poucos moradores de rua e os oito traficantes de drogas de sempre. De noite eles se multiplicam. Para quem eles vendem, me pergunto? A noite de ontem estava tão vazia que nem lua havia. O céu nublado escondia até as luzes coadjuvantes das estrelas. “A solidão dos astros, a solidão das ruas, a solidão da noite, a solidão da lua”. Tudo lembrava meu conterrâneo Alceu Valença.
Moro sozinho e tenho tecnicamente todas as condições de passar por uma quarentena sem grandes atropelos. Como pouco, tenho ao lado de casa hortifrúti, mercado, padaria, restaurantes, banco, açougue e sorveteria. Minha rotina deveria ser tranquila, mas a vida nem sempre é tão simples assim. Sou uma figura pública numa aldeia de pescadores. Não estou dizendo que sou famoso. Não me entenda mal. Sou muito conhecido e, portanto, tem sempre alguém batendo à minha porta. Mesmo querendo e precisando ficar sozinho às vezes não posso.
Não que ache a situação ruim. Não sou uma ilha. Preciso do contato com outras pessoas para exercitar minha humanidade. Aliás, o ser humano só se realiza como humano frente um semelhante. Coloque um homem num campo de futebol junto a macacos, cavalos, antas, gatos, ratos, cachorros, hipopótamos, abelhas, girafas e mande-o gritar que ele é um ser humano inteligente, uma criação divina, um filho de Deus. Será constrangedor. Não lhe darão ouvidos. Será mais um animal junto aos outros animais. Se for eleitor de Bolsonaro então, comerá grama assim que chegar.
A pandemia do coroavírus irá afetar de maneira profunda algumas pessoas. Ao menos as que pensam. Não é que nada será como antes. Tudo voltará a ser como antes. Muitos não assimilam nem as tragédias cotidianas que fazem parte de sua suas vidas. Riem de tudo. A maioria, principalmente aqueles que não sofrerem direta ou indiretamente com a doença pouco ou nada se lembrarão do que passamos ou iremos passar. Faz parte da necessidade de sobrevivência apagar da consciência memórias ruins. Essa á a historia da sociedade.
O registro fica a cargo de alguns. Por isso a importância de livros, jornais, televisão, cinema e de pessoas que decidam doar seu tempo para que os acontecimentos virem história. É como numa partida de futebol. Quando acaba, cabe aos comentaristas darem conteúdo ao que passou. A torcida vai para casa reclamando ou comemorando. Quem perder algum parente depois dessa guerra biológica irá sofrer. Quem passar incólume dirá: graças a Deus eu não tive nada. Garçom, mais uma cerveja!
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