por Carol Gonçalves
Enquanto eu pensava no que abordar na coluna, lembrei que meu setembro foi marcado por três situações desagradáveis, ou melhor, por situações de racismo cotidiano. Nada novo sob o sol colonial, mas tem dias que marcam mais que os outros. São violências naturalizadas com um cínico pedido de desculpas ou a batida frase “não quis ofender”, estrategicamente utilizados pra me colocar como exagerada e intolerante. É cansativo, sabe, mas a vida segue e raiva também é combustível. Nas três ocasiões eu escolhi me calar, não por falta de resposta ou porque eu não percebi o crime, mas é que precisamos escolher as batalhas que valem a pena batalhar.
Lembrei do vídeo da Aza Njeri falando sobre “afrosurto”1. Um termo que ela cunhou pra descrever o sentimento que nos atravessa quando nos damos conta da estrutura a qual somos submetidas (os,es). Ela diz que “afrosurto mal canalizado vira textão de facebook”. Lembrança que mais uma vez me fez refletir pra onde eu direciono meus esforços.
A lógica colonial (branca, racista e eurocêntrica), ainda em curso, nos coloca em um ciclo vicioso: eles violentam, nós nos ocupamos em reagir. No final das contas, adoecemos na tentativa de “educar” e furar a bolha branca. Maria Aparecida Bento (2002) já deu o papo que o silenciamento e a falta de autocrítica da branquitude faz do Brasil um país racista sem pessoas racistas. Curioso, não? Mas isso é assunto pra outra hora, vamos falar do que realmente importa.
Que tá tudo indo muito mal, não é novidade, mas, o que fazemos com o que fazem com a gente?
…
Em agosto, eu fui pra casa da minha mãe comemorar seu aniversário. Foram duas semanas de muita troca afetiva, um acalanto pra uma quarentenada ansiosa. Numa das conversas com ela e meus irmãos (Mateus, Gabriel e Duda), o tema “racismo” apareceu, ficamos comparando nossos posicionamentos pra ver se pareciam mais com os de Martin Luther King ou de Malcom X. Depois de muitas reflexões e algumas gargalhadas decidimos que nas próximas noites continuaríamos as conversas.
E assim seguimos, às 20:30h depois das atividades do dia. Misturamos Cheikh Anta Diop com Emicida e Djonga, Aimé Césaire com Beyoncé, sabedoria de preto velho com kwanzaa. Assistimos “La noire de” do Sembène e dançamos Beth Carvalho. Nos auto-educamos, acendemos nossos sóis.
No mesmo mês rolou um super aquilombamento no Festival Movimentos Negros, Ancestralidades e Contemporaneidades2 em que tive a honra de colaborar na produção, além de ser convidada a compor uma roda de conversa. Foi uma articulação incrível de coletivos e redes da Região dos Lagos.
Voltei pra casa renovada, meu ori tava nutrido de potência. Agora, enquanto coloco essas palavras no word, me curo na escrevivência3, abro espaço pra viver o presente e projetar possibilidades futuras onde meu corpo negro se desvincula, cada vez mais, da urgência de dar respostas aos cinismos do mundo branco.
Penso na escrita de Grada Kilomba (2019, p. 38) em “Memórias da Plantação” quando ela recusa as “…fantasias que não nos representam, mas sim ao imaginário branco… Portanto, elas não são de nosso interesse.”
Se desocupar do racismo é um movimento de negação aos lugares que a dinâmica colonial impõe, criando novos lugares de experimentação e de vivência.
Não se trata de ignorar os fatos, é sobre escolher canalizar o axé pro que potencializa o orí, pro que te nutre, mesmo nesse contexto de tragédia diaspórica.
Referências cosmosensitivas pra repotencializar o orí:
- Filme “Travessia” de Safira Moreira, disponível em: https://vimeo.com/236284204
- Livro “A dívida impagável” de Denise Ferreira da Silva, disponível em: https://casadopovo.org.br/wp-content/uploads/2020/01/a-divida-impagavel.pdf
- Álbum “Pedras, Flechas, Lanças, Espadas e Espelhos” de Thiago Elniño, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uvZ3Y_dIJQI
- Cena “Anastácia como Vênus, uma cena de tradução” de Yhuri Cruz, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q4QmC-SJSTU
- banho de alecrim com manjericão.
Quando precisar, denuncie ! Precisamos tratar quem nos violenta como criminosos. Polícia Militar – 190
Corregedoria da polícia militar – (21)2725-9098
Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – (21) 2333-3509 Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB – (21) 2272-6150 Núcleo Contra a Desigualdade Racial da Defensoria Pública – (21) 2332-6186 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
Capital – 159
Demais localidades – (21) 3133-3915
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1 disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=VEb1fRyM0mo
2 Se você perdeu, veja aqui: https://www.youtube.com/channel/UCoi-zspflOBz-26y6kS3SKQ
3 “Surge a fala e um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra” (EVARISTO, 2005, p. 205)