Cena 1
Em um dia quente, me vejo em uma canoa de pescadores na Lagoa de Araruama. Os pescadores são unânimes ao declarar em entrevista a mim concedida que o grande problema para a continuidade de seu trabalho, muito mais do que o defeso era a poluição da Lagoa que segundo eles, aumentou muito já há mais de dez anos. As cidades que estão no entorno da despejam, diariamente, toneladas de dejetos. A coisa piora muito na alta temporada, quando estas cidades se enchem de turistas, dizem eles.
Cena 2
Campo Alegre de Lourdes, Norte da Bahia. Dez por cento da cidade, madrugou para pôr o pé na estrada. Era dia do povo fazer uma romaria, organizada pela Igreja e por lideranças locais em direção ao alto do morro do Tuiuiú. Aquele morro fica sobre uma das mais ricas jazidas de titânio e vanádio, metais nobres altamente valorizados no mercado internacional e sob a mira da Largo Mineração, uma holding canadense. Se fosse pelo governo do Estado da Bahia, pela Largo Mineração e pelo imperativo econômico do país em sustentar as exportações do país como commodities como minério, aquele povo de Campo Alegre já teria sido varrido por muito tempo. Por enquanto, as orações parecem estar sendo ouvidas.
Cena 3
Mariana, Minas Gerais, novembro de 2015, e Brumadinho, Janeiro de 2018. As barragens construídas pelas empresas Samarco e vale do Rio Doce romperam-se provocando tsunamis de lama tóxica. Por duas vezes, os rejeitos arrasaram distritos das cidades e mataram dezenas de pessoas. As três situações acima são ilustrações do tipo de desenvolvimento que nos acostumamos no Brasil. Eles possuem uma impressionante regularidade no tempo, e nos impactos sociais e ambientais que produzem.
Desde tempos longínquos, a criação de riqueza no Brasil sempre teve como contrapartida, a produção também de desigualdade, danos ao meio ambiente e não raras vezes, mortes. É como se todos estes problemas fossem um “mal necessário” que foi naturalizado com o tempo, um ônus que o país teria de pagar para alcançar o tão sonhado desenvolvimento.
Conheço muito bem Minas Gerais e particularmente aquela região de Mariana e de Brumadinho, onde duas barragens romperam. Aquelas cidades tiveram sua histórias moldadas por aquilo que elas retiram da terra, desde o século XVIII.
Depois do Ouro, veio o minério de ferro, depois dos portugueses, vieram os ingleses, que passaram a dar nomes aos lugares onde se estabeleciam: Itabirito, por causa da Itabira Iron, Hargreaves, por causa do engenheiro inglês que se mudou para as Gerais. Meus avós, tendo trabalhado na mineração, e me contavam estórias da riqueza que estava à espera de quem se aventurasse a descer aquelas galerias. Sempre alguém ficava por lá, enterrado naquelas minas.
O trabalho na mineração sempre foi a ocupação de gente pobre, que deixava a roça para tentar ganhar algum salário melhor como empregado de uma mineradora. Quem não morria nos constantes acidentes nas minas, tinha como fim a morte lenta, provocada pelas doenças pulmonares, depois de décadas trabalhando embaixo da terra.
Quando ia a Minas Gerais, ficava olhando as montanhas de minério tiradas da terra, tão grandes quanto os buracos que eram criados pelo trabalho das máquinas e dos homens. De certa maneira, aquelas montanhas eram uma metáfora do desenvolvimento desse país: cavamos muito fundo, até que aquela fonte de riqueza se transforme em algum tipo de sepultura.
Enquanto me lembro das montanhas de ferro de Minas Gerais e das histórias de vida e morte da gente que sempre dependeu daquele trabalho, um pescador da Lagoa de Araruama me conta que muito antes do esgoto, a atividade incessante das máquinas da Álcalis, revolvendo o fundo da Lagoa alterou definitivamente o meio ambiente da região. Aqui também as máquinas abriram um buraco. A fábrica se foi e o buraco ficou no fundo da Lagoa e no fundo das memórias dessa gente. E assim tem sido nossa história, cheia de buracos que nunca são tapados.
*Paulo Roberto Araújo é professor de História e suburbano convicto