Por Hamber Carvalho
O despertar da maré suja
Em Búzios, onde o pôr do sol costuma ser fotografado por turistas de todo o mundo, o mar também refletia uma face menos poética. A cada chuva, as águas escuras e de odor irrespirável da Rua Rancho Mutã escorriam até a Praia de Manguinhos carregando o que ninguém queria ver: água preta, espuma branca, cheiro forte e manchas escuras que se misturavam ao azul da enseada.
Foi entre essas marés — umas de água, outras de indignação — que nasceu a AMANRASA, a Associação de Moradores e Amigos das Praias de Manguinhos e Rasa. A fundação, em maio de 2022, foi a resposta de 180 moradores que decidiram transformar incômodo em ação. Hoje já são mais de 500 associados, a maior associação de Búzios.
“A gente percebeu que só o protesto não bastava”, diz Kiki Lessa, presidente da associação e moradora próxima à saída de águas pluviais da Rancho Mutã. “Era preciso fiscalizar, estudar, propor soluções e dialogar com quem realmente tinha poder de execução.”

Do barulho à escuta
O primeiro gesto da AMANRASA foi quase jornalístico: documentar o problema. Fotos, vídeos, medições de maré, análises empíricas. O que era apenas queixa virou prova. As imagens correram grupos de WhatsApp, chegaram à Prolagos — concessionária responsável pelo esgoto em Búzios — e à Secretaria Municipal de Saneamento e Drenagem.
O encontro entre moradores e autoridades foi tenso, mas inédito. De um lado, a prefeitura argumentava que as redes antigas e as ligações clandestinas dificultavam o controle. Do outro, os moradores insistiam: havia tecnologia, havia recurso, faltava prioridade. E, no meio disso, uma decisão: agir juntos.
“A gente decidiu não gritar do lado de fora, mas sentar à mesa”, lembra Salviano Leite, engenheiro e associado da AMANRASA. “Foi aí que as coisas começaram a andar.”

O bairro que vivia debaixo d’água
O epicentro da crise era o bairro Cem Braças, comunidade adensada e abaixo do nível do mar. Lá, por décadas, bombas de sucção funcionavam sem descanso, tentando conter os alagamentos. Quando a chuva cessava, outro inimigo aparecia: o cheiro. O esgoto corria pelas galerias de águas pluviais e terminava, invariavelmente, no mar.

Hoje, a paisagem começa a mudar. Está em execução a maior obra de rede separativa de esgoto da história de Búzios, conectando 700 residências a um sistema que leva o efluente direto à Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), no bairro São José.



O modelo separa águas pluviais e esgoto — o básico, mas que nunca tinha sido feito. E o feito só se tornou possível por uma combinação rara no serviço público: uma prefeitura que doa materiais, uma concessionária que investe R$ 3 milhões e uma sociedade civil que fiscaliza cada metro de tubo instalado.
“Essa conquista é coletiva, mas o papel da sociedade civil foi decisivo”, explica Salviano Leite. “O impacto é visível não só em Cem Braças, mas nas praias de Manguinhos e Rasa. O mar agradece.”
As engrenagens do progresso
O sistema é de ponta: cinco quilômetros de rede, 126 poços de visita e ligação direta à Estação Elevatória de Esgoto, que impulsiona o fluxo até a ETE. Desde 2017, a estação opera com tratamento terciário, o mais avançado do país, e teve sua capacidade ampliada em 20%.
“Essa obra é saúde pública, qualidade de vida e preservação ambiental”, afirma Aziel Santos, secretário municipal de Saneamento e Drenagem. “Já são dois meses sem despejo emergencial na Rua Rancho Mutã. Todo o fluxo está sendo tratado pela Prolagos.”
Em apenas 60 dias, 40% da obra foi concluída. Cada trecho finalizado entra em operação de imediato. Dos 700 imóveis previstos, 285 já estão conectados. A prefeitura, contrariando a praxe, decidiu assumir o custo das ligações domiciliares — cerca de R$ 4 mil por residência.
“Garantir que cada família tenha acesso ao saneamento sem custo é uma questão de justiça”, diz o prefeito Alexandre Martins.

A sociedade que vigia
A AMANRASA não se limita a acompanhar as obras. Organiza mutirões de limpeza, campanhas educativas e vistorias técnicas — com engenheiros voluntários e apoio da Prolagos. Também mantém diálogo constante com a Secretaria de Saneamento e Drenagem, cobrando prazos e soluções.
“Esgoto e água da chuva não se misturam — nem nos canos, nem nas ideias”, diz Kiki Lessa,. “O segredo é transformar indignação em proposta.”
Essa lógica colaborativa vem gerando resultados. A balneabilidade das praias de Manguinhos e Rasa já apresenta melhora significativa. A Barra Grande, antigo nome do desfecho do desague das águas da chuva, onde hoje é a Rua Rancho Mutã, antes símbolo da contaminação, começa a voltar à cor natural.
A previsão é que 90% da área de Cem Braças esteja saneada até março de 2026. E A Prefeitura já estrutura que sejam efetuadas a ampliação da drenagem e saneamento nas adjacências ao bairro, reduzindo ainda mais o risco de extravasamentos de águas pluviais com contribuição de esgoto.

Do caos à rede separativa
Em Búzios, o saneamento sempre foi tratado como um problema invisível — enterrado sob o calçamento irregular e o verniz turístico. A experiência da AMANRASA desmonta essa lógica: ao articular comunidade, poder público e iniciativa privada, provou que a cidadania pode ter papel técnico, fiscal e transformador.
“É um trabalho silencioso, mas essencial”, conclui Aziel Santos. “Estamos revertendo anos de passivos e garantindo que a água que chega ao mar seja cada vez mais limpa.”
A mudança ainda não está completa. Há ruas por pavimentar, fossas por fechar e ligações por fazer. Mas, pela primeira vez, o cheiro de esgoto que denunciava o descaso começa a ser substituído por outro — o do maresia.

O novo pacto das águas
Está história é menos sobre saneamento e mais sobre pertencimento. Sobre moradores que entenderam que cuidar do mar é cuidar de si. Sobre técnicos que abriram planilhas e moradores que organizaram a indignação em engajamento para abrir caminho.
Em Búzios, onde o luxo e o abandono convivem há décadas, um grupo de cidadãos que não deixam de fiscalizar e cobrar, mas que também não veem a concessionária e a Prefeitura como inimigos, ensina que mudar o destino das cidades começa quando alguém decide medir o nível da maré.
E o objetivo, repetido como um mantra nas reuniões, continua o mesmo:
“Esgoto zero.”
E, desta vez, não soa como promessa.

 
								 
						 
											

