Assunto é pauta de projeto de lei na Câmara de Vereadores e foi discutido em audiência pública nesta sexta-feira (29)
O uso da Cannabis para fins medicinais é esperança de qualidade de vida para cerca de 400 famílias de Búzios que têm casos de autismo e de epilepsia refratária. Os dados são da Coordenadoria de Saúde Mental, vinculada à Secretaria de Saúde do município, e foram apresentados na audiência pública realizada nesta sexta-feira (29), na Câmara de Vereadores. O levantamento feito para a criação do Programa de Cannabis Medicinal dá sustentação ao Projeto de Lei nº 93/2021, que tramita na casa legislativa para desburocratizar o acesso ao medicamento.
O município que já é pioneiro na rede de saúde pública do Brasil na prescrição do óleo de cannabis para fins medicinais, que já ocorre há 4 meses, agora busca na legislação a implantação de políticas públicas para inclusão do medicamento na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME), com distribuição gratuita nas residências dos pacientes através de agentes comunitários. O sonho que parecia distante já caminha a passos largos e tem tudo para ser referência em todo o país.
Segundo o ativista e representante da 61ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Búzios, Hamber Carvalho, a iniciativa do vereador Aurélio Barros, autor do projeto de lei, em levar a pauta para o legislativo é um marco para o Brasil, pois se antecipa até mesmo a Câmara dos Deputados. Ele lembrou que apesar do óleo da cannabis ser liberado no Brasil, não há um processo legal de introdução do medicamento, apenas uma normativa de 2014 que retira o óleo de cannabis da lista de substâncias proibidas e autoriza o uso, mas não o cultivo para esse fim, a não ser por medida de habeas corpus.
“Em 2014, por interesse econômico, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) fez uma formação no Canadá sobre o óleo de maconha. Depois de seis meses, volta para o Brasil, normatiza e autoriza o uso do óleo e o retira da lista de substâncias proibidas. A instituição queria introduzir no país um remédio que na época custava R$2.700, ou seja, pode comprar, mas não pode fabricar, a não ser que seja com insumos importados. O Brasil entra nessa discussão meio que pela porta dos fundos, porque não tem um instrumento legal. Tem até um Projeto de Lei 399, na Câmara dos Deputados, que inclui a produção nacional, mas a gente sabe que não vai passar. Aqui nós estamos antecipando o uso medicinal. A proposta do vereador é um marco que vai criar procedimentos sobre o uso do óleo. Não é só para a Região dos Lagos, é um marco porque ela vai criar parâmetros para que as outras prefeituras acompanhem esse procedimento. Vai ser um marco também para os futuros habeas corpus para cultivo coletivo ou cultivo individual para efeitos medicinais. É um desmonte de um preconceito e quebra de paradigma”, explicou o ativista.
Quem também esteve presente na audiência foi o médico-cirurgião, Rafael Pessoa. Ele junto com uma equipe médica tem se movimentado, desde o início do ano, para democratizar a cannabis medicinal.
“Um prazer vendo esse município tomando a vanguarda da discussão de grandes políticas públicas do Brasil. Esse é um marco e eu acredito que isso vai entrar para história. Muita gente vai ser beneficiada. Temos dezenas de casos de pessoas que se beneficiam, e privar a saúde é algo que a gente não pode deixar acontecer. Eu acho que existem várias vertentes como acesso e o custo simplificados, treinamento e uso racional baseado em evidência. No final das contas o que mais importa, independente da nossa discussão, é o desfecho. Se a discussão é cura, tratamento, melhora da qualidade de vida, isso que importa. O fomento da discussão é muito importante com a comunidade médica, legislativa, população, e democratizar é discutir o tema.
O médico, Claudio Agualusa, disse que defender a medicina cannabis num país “hipócrita” é um ato de coragem.
A medicina canábica é um fato. Ela não é mais uma discussão se serve ou não. A discussão hoje é como fazer com que ela possa chegar a quem precisa. Só não é entusiasta quem nunca viu ou não parou para estudar o mínimo. Quando eu vejo um paciente, como eu já vi vários, apresentar uma melhora em horas, quando eu vejo uma mãe dizer que pela primeira vez ela conseguiu dormir, eu não posso como homem, como cristão, como médico virar as costas. Lá fora tem um bando de gente em cima do muro esperando qual será o caminho que a medicina canábica vai seguir. Esses que estão em cima do muro estão contra”, desabafou o médico.
O representante da Abra Búzios, Antonio Jairo dos Anjos Gomes, disse que o papel da Associação nas discussões é a qualidade do medicamento.
“Nós queremos participar garantindo que o medicamento à base de cannabis que a Prefeitura por ventura venha a distribuir através da Secretaria e do Sistema Único de Saúde (SUS), tenha extrema qualidade como nós conseguimos atualmente produzir em Búzios. Um medicamento que tenha realmente um controle de ml, concentrações, canabinóides e cepa diferentes, porque o sistema endocanabinóide faz parte de todo o mamífero, então nós não podemos ter apenas um medicamento para vários casos”, pontuou Jairo.
Outro médico presente na audiência foi o médico psiquiatra, Guilherme. Segundo ele, está mais do que claro para todo mundo a importância da medicina cannabis, e acredita que se chegou a um momento em que o que tem que ser feito é mudar a legislação.
“Hoje você pode comprar o óleo por CPF. Essa lei que estamos discutindo aqui vai permitir que a gente compre o óleo na cannabis pelo CNPJ da prefeitura. Esse é o grande passo que temos que dar. Eu não atendo crianças, mas atendo os familiares e outras patologias, e o que eu tenho observado em Búzios é impressionante, mudança da água para o vinho. Essa lei vai abrir um espaço em todo o Brasil para que a gente possa pleitear junto à Anvisa a liberação para importar ou para comprar ou até mesmo para plantar, a nível de CNPJ. Isso impacta. Esse é o nosso grande passo”, ressaltou.
Para o neurologista, Eduardo Feverest, “o uso medicinal está bastante embasado cientificamente em algumas patologias, existem indícios fortes de eficácia e segurança. A cannabis não só deve ser usada para tratamento, mas também como proteção. Se a patologia for tratada precocemente, não só corrobora com a recuperação dos estímulos dos tecidos como para redução de danos”, explicou
Origem do Projeto de Lei
A criação do projeto de lei não foi aleatória. O vereador Aurélio Barros, que é pai de um jovem autista, o João Paulo, de 18 anos, sente na pele o sofrimento do filho.
“Meu filho chegou a tomar 16 medicamentos diferentes, hoje ele só toma três. Mas estamos esperando o óleo chegar para começar a introdução com o canabidiol”, contou o parlamentar.
O médico Claudio Agualusa sugeriu na audiência que quando o projeto virar lei se chame ‘Lei João Paulo’ “para que o Brasil possa lembrar da luta vivenciada pela família”.
O projeto prevê a distribuição gratuita de medicamentos nacionais e importados à base de cannabis medicinal que contenham em sua fórmula a substância Canabidiol (CBD), Tetrahidrocanabinol (THC) e/ou demais canabinoides da planta, desde que devidamente autorizado por ordem judicial ou pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e prescrito por profissional médico acompanhado do laudo das razões da prescrição.
A proposta também autoriza o município a adquirir medicamentos de entidades nacionais ou internacionais, que demonstrem capacidade de produção dos produtos à base de cannabis, adequada e segura à demanda institucional do órgão público. As despesas decorrentes da execução da lei correrão a conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Programa de Cannabis Medicinal
A coordenadora de Saúde Mental de Búzios, Ana Célia, contou que o projeto teve origem de uma inquietação pessoal, quando no início da profissão viu autistas sendo tratados dentro de hospitais psiquiátricos, segregados de toda a sociedade. À época percebeu que existem práticas possíveis dentro da medicina com trabalho intersetorial e multiprofissional. Quando assumiu a pasta, ela foi preparar as ações para o mês do autismo e percebeu a quantidade de pessoas que têm esse tipo de patologia no município.
“Eu comecei a levantar aqui no município a clientela que poderia ser beneficiada com o uso do óleo da cannabis e chegamos a 400 autistas, mas fui informada que esse número pode ser maior ainda. Como esse assunto já tinha sido tratado antes no município, mas não tinha dado continuidade, incluímos a temática na Conferência Municipal de Saúde, realizada no dia 20 de agosto deste ano, na qual foi discutida e implantado o Programa de Cannabis Medicinal” em Búzios, explicou.
Segundo Ana Célia, por questões orçamentárias, o projeto beneficia, neste momento, 90 crianças autistas de diversos graus e com epilepsia refratária de 3 a 10 anos. A intenção é aumentar o número de atendimentos até o final do ano e abrir para outras patologias, como clínica da dor, Parkinson, Alzheimer, ansiedade, depressão, entre outras. Ela explicou que no projeto consta a capacitação dos profissionais, porque, segundo ela, “não adianta um projeto bonito sem capacitar a equipe técnica”. Além disso, a pasta está buscando instituições de pesquisas para legitimar e dar respaldo ao projeto, com a Universidade Federal Fluminense (UFF), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (APEPI).
“É um projeto tímido, mas vocês não imaginam o que ele representa. Esse projeto é a menina dos meus olhos, enquanto eu estiver como profissional de Saúde Mental”, finalizou emocionada.
O projeto foi orçado em R $720 mil por ano e já teve parecer positivo do vereador Uriel Pereira, que é o presidente da Comissão de Orçamento da Câmara, durante a audiência pública, que se comprometeu em aprovar a emenda para o ano que vem.
Casos de sucesso
Durante a audiência, muitos depoimentos foram compartilhados demonstrando a eficácia do medicamento. Um desses depoimentos foi da Ludmila, mãe de uma criança de 5 anos diagnosticada com autismo. “Ele faz uso há 5 meses e a experiência está sendo incrível. Ele melhorou bastante a concentração, principalmente na escola. Está sendo maravilhoso o resultado”, contou.
Outro depoimento foi do Lúcio, que contou a história do seu filho mais novo, de 28 anos, diagnosticado com autismo e síndrome de down. Recentemente ele abandonou os medicamentos e hoje tem qualidade de vida.
“Leandro foi tranquilo até a adolescência, mas mudou muito o comportamento no decorrer dos anos, e foi aí que começamos a procurar psicólogos e psiquiatras. A medicação é um desafio para os médicos, muitos têm contraindicações. Desde que começou a usar o óleo da cannabis, ele não toma nenhuma outra medicação”, contou
Dominique é outra mãe de autista que viu o uso do óleo de forma positiva. O filho de cinco anos deixou de ter compulsão alimentar e melhorou na forma de se expressar. “Ele se expressa melhor, está mais concertado, presta atenção no que eu estou dizendo, é uma nova criança”, compartilhou.
Mãe de uma criança de 5 anos e quatro meses com transtorno de atenção da fala, o tratamento trouxe melhorias para o filho de Lola. “Ele tinha muita ansiedade, gritava muito e agora está mais calmo, já sabe o abecedário, os números de 1 a 10, interage mais” disse.
Fernandes, de 59 anos, foi diagnosticada há 2 anos com pastoriza astrofísica, doença que causa dor nas articulações. “Há 7 meses venho fazendo tratamento com cannabis e acompanhada por um reumatologista, as dores melhoraram 90%, voltei ao mercado de trabalho, tenho melhor noite de sono e me alimento melhor”, celebrou.