Na semana depois da morte de Marcelo Lartigue, escrevi uma espécie de homenagem a ele, e essa homenagem apareceu na edição do Perú Molhado do 2/1/2015, num momento em que o Perú, embora claramente precisando de um novo influxo de oxigênio, ainda estava capaz de locomoção bípede – enfim, mais ou menos. Falei, nessa matéria, de como eu sempre tinha tido um fraco para os jornais e revistas, geralmente alternativos, que faziam o trabalho de cobrir as suas declaradas áreas de interesse (política, cinema, cultura em geral, moda, ou, como no caso do Perú, uma determinada cidade ou bairro) mas nunca perdiam uma oportunidade de examinar os seus próprios umbigos, e esse jornalismo focado (em parte) em si mesmo sempre estava ainda mais fascinante quando, como no caso do Marcelo, o dono de um desses veículos tinha uma personalidade extrovertida ou, melhor, exibicionista e não reconhecia limites entre ele mesmo e o veículo.
Pensei mais uma vez nessa tendência autodramatizante de Marcelo quando, semana passada, meu colega Eduardo Almeida publicou algumas lembranças de Marcelo nestas mesmas páginas virtuais do Prensa de Babel, e a coluna tinha, como uma das suas ilustrações, uma velha capa do Perú, uma charge de Chico Caruso, em que Marcelo aparece pregado a uma cruz. Essa capa, por sua vez, me fez pensar numa outra capa em que Marcelo apareceu sob o disfarce de um judeu ultraortodoxo. (Para quem não se lembra da ocasião, Rui Borba Filho, pessoa absurdamente ambiciosa, eterno candidato para o papel de eminência parda atrás de qualquer trono buziano, católico conservador, defensor da lei e da ordem, e eterno antagonista do anarquista Marcelo, tinha tratado Marcelo de “judeu sujo”, ou algo parecido, numa das suas repetidas rixas, e Marcelo se mostrou à altura do desafio.)
Marcelo mártir? Mais um arremedo debochado do mártir do que verdadeiro mártir. (Não me lembro perfeitamente da segunda dessas capas, mas na primeira, a em que está pregado à cruz, está sorrindo largamente, como se não estivesse numa cruz mas sim numa festa de arromba regada a champanha e cocaína.) Ao longo dos anos, ficávamos acostumados, nós, buzianos, a encontrar Marcelo, dentro das páginas do Perú, não somente como mártir, ou falso mártir, mas também como bon vivant, como boêmio, como promotor de Búzios incansável, como viajante assíduo para qualquer lugar para o qual conseguiu angariar um bilhete de avião promocional, como equilibrista financeiro, como portador de várias doenças crônicas, como beneficiário reincidente da generosidade da medicina cubana, como libertário, como rebelde, como safado, como pai da Eva, e, sim, sempre, na novela mais duradoura da cidade, como o rato Jerry em relação ao gato Tom do deplorável Rui Borba – ou, ainda melhor, como os Irmãos Marx em relação à rígida Margaret Dumont do Rui.
Marcelo – ou seja, Marcelo, o personagem que o Marcelo-pessoa-física criou, e constantemente recriou e amplificou, dentro das páginas do Péru Molhado – era, sem dúvida, o mais interessante entre todos os personagens que passavam recorrentemente pelas páginas desse saudoso jornal. Mas o Marcelo-personagem era somente o mais arredondado e complexo das suas ricas invenções. De certa forma, o repórter investigativo Muchacho Bicho Doido, o Cabelada, o Capitão Caverna, a Drika de bolsa cheia, a socialaite Angela Barroso também eram invenções do Marcelo. Sem o Marcelo, essas pessoas teriam existido? Até o Sandro (coveiro e boy repórter) e o Mohamed Hamber eram em grande medida invenções do Marcelo. É óbvio que um personagem tão absurdo como Rui Borba não poderia existir na realidade. O Rui também deve ter sido uma invenção do Marcelo, e ocorre-me às vezes que os próprios gêmeos Mirinho e Toninho – para nós, estrangeiros anglófonos, os nossos Tweedledee e Tweedledum – também eram criações do Marcelo. Resta a possibilidade de que todos nós, nós que morávamos neste balneário, ao mesmo tempo ridículo e fabuloso, na época do Marcelo, não teríamos existido com a mesma vividez, se não tivéssemos sido processados e reprocessados por esse filtro que era a fértil imaginação do nosso grande e saudoso Homero. Talvez não tivéssemos existido de forma alguma.
E agora? Já que o nosso Homero – sim, Homero – se mandou, nós existimos … ainda? Sim, eu acho que sim. Existimos. Mas com certeza de uma forma mais pálida, mais convencional, sem essa aura mágica em que o Marcelo nos embrulhou toda semana. Somos pessoas agora. Pessoas físicas. Alguns de nós somos pessoas jurídicas também. Mas personagens num palco? Isso, não. A nossa Idade do Mito encerrou. Caímos na pobre história. Saudades, Marcelo.