Quando Búzios se emancipou politicamente de Cabo Frio, em 12 de novembro de 1995, nascia também sua Câmara Municipal — símbolo do novo ciclo de autonomia política e palco dos ritos oficiais que marcam a vida pública da cidade. Foi ali que se instituíram solenidades como o Título de Cidadão Buziano, a Medalha José Bento Ribeiro Dantas e as Moções de Aplauso. Mas, entre as honrarias, um outro instrumento também ganhou espaço: a Moção de Repúdio.
Em 30 anos de história, o Legislativo buziano já se valeu desse recurso para expressar descontentamento com empresas prestadoras de serviço, figuras públicas e até instituições nacionais. A ENEL e a Prolagos, concessionárias de energia e saneamento, foram alvos frequentes de críticas e ameaças de moções. Mas a sessão mais polêmica ocorreu quando um vereador propôs repudiar, por meio de uma nota oficial, o Supremo Tribunal Federal, por conta da decisão que tratava da descriminalização do aborto.
O episódio mobilizou protestos de mulheres na Câmara. O plenário foi interrompido antes da votação, e a proposta, arquivada. “Seria o repúdio de uma câmara do interior contra uma decisão de um dos três poderes da República”, resume uma das manifestantes que acompanhou a sessão.
Mas a história das moções de repúdio em Búzios não se limita às instituições. Pessoas também foram oficialmente alvo do gesto político. Entre elas, três nomes se destacam — dois deles ligados ao jornalismo e à vida cultural da cidade: Sandro Peixoto e Hamber Carvalho.


Legenda: Curiosamente Sandro interpretou um evangélico no filme “21 mão na Cabeça”, dirigido por Milton Alencar JR, baseado no livro de José Louzeiro. Hamber Carvalho é u orgulhoso militante da causa da cannabis medicinal _ Foto de Ronald Pantoja.
O repúdio ao “Circo dos Horrores”
Em 2004, o jornalista Sandro Peixoto, então repórter de O Perú Molhado, recebeu uma moção de repúdio proposta pelo vereador Aziel da Silva Vieira, aprovada sob a presidência de Fernando Gonçalves dos Santos.
O Perú Molhado era o principal jornal alternativo de Búzios, criado nos anos 1990 por Marcelo Lartigue. Misturava humor, crítica política e comportamento, tornando-se uma publicação símbolo da irreverência buziana.
Sandro conta que o motivo oficial da moção não foi explicitado, mas a origem está em uma reportagem sua intitulada “O Circo dos Horrores”. No texto, ele denunciava abusos e práticas de charlatanismo em um evento religioso organizado por um pastor vindo do Espírito Santo, realizado no campo do Manguinhos Esporte Clube.
A matéria afirmava que todos os candidatos a prefeito da época teriam colaborado financeiramente com a vinda do pastor, possivelmente para agradar ao eleitorado evangélico em crescimento. “Defendi a fé sincera dos evangélicos e critiquei o uso político da religião”, recorda Sandro. “Recebi agradecimentos de fiéis antigos que disseram não concordar com o que aconteceu naquele dia.”
Na reportagem, ele descreveu um ambiente de histeria: o pastor gritava, tirava a camisa e fazia comentários preconceituosos sobre artistas e jogadores de futebol. “As pessoas gritavam, vomitavam e desmaiavam. VI pessoas de Búzios, amigos evangélicos, que estavam de cabeça baixa , constrangidos com a cena”, lembra. A sessão legislativa que aprovou o repúdio teve apenas um voto contrário, o do então vereador Adilson da Rasa, a quem Sandro menciona em tom de humor: “Ele só votou contra porque estava bêbado”, brinca.
O presidente da Câmara chegou a afirmar depois que não sabia quem seria o alvo da moção. “Eu não acredito”, diz o jornalista, entre risos.
O “batom” que gerou incômodo
Poucos anos depois, foi a vez do jornalista, advogado e ativista Hamber Carvalho. Também ligado a O Perú Molhado, ele recebeu uma moção de repúdio por uma reportagem intitulada “Quem Tem Medo do Batom”, publicada entre 2006 e 2009, segundo ele recorda.
O texto tratava da visibilidade da comunidade LGBT em Búzios e questionava o conservadorismo local. A moção foi proposta sob alegações de “ofensa à moral e aos bons costumes”. “Era uma matéria sobre liberdade, sobre direito de existir. Mas causou incômodo em um tempo em que o tema ainda era tabu”, diz Hamber.
Atualmente, ele atua na defesa do uso medicinal da maconha e mantém o humor ao lembrar do episódio: “Fui o segundo buziano a ser oficialmente repudiado pela Câmara. Um privilégio histórico”, ironiza.
O professor e a polêmica seleção
O terceiro nome a receber uma moção foi o professor universitário Cláudio Mendonça, secretário de Educação de Búzios entre 2013 e 2014. O repúdio foi proposto pelo vereador Felipe Lopes, após uma série de desentendimentos entre o secretário e parte da comunidade escolar, motivados por um processo seletivo para professores. Mendonça levou a moção consigo para Niterói, cidade onde residia, “como lembrança de uma passagem conturbada”, segundo colegas da época.
Entre o símbolo e o gesto político (Posição editorial da Prensa) – As moções de repúdio, ao longo das três décadas da Câmara de Búzios, ajudaram a contar um outro lado da história política do município: o das disputas simbólicas. Elas revelam os embates de ideias, os limites da tolerância e a convivência entre conservadorismo e liberdade de expressão em uma cidade que, apesar de jovem, já acumulou um repertório expressivo de histórias políticas e culturais. Trinta anos depois da emancipação, Búzios segue escrevendo sua história — entre aplausos, títulos e, claro, alguns repúdios que o tempo transformou em memória. As moções de repúdio, ao longo das três décadas da Câmara de Búzios, ajudaram a contar um outro lado da história política do município: o das disputas simbólicas. Elas revelam embates de ideias, limites de tolerância e o desafio permanente de conviver com a diversidade de opiniões que compõem a cidade. Mas também deixam um alerta. O repúdio — gesto extremo no ritual político — deve ser reservado a situações em que haja consenso moral e social, em que de fato se expresse a indignação coletiva de uma comunidade. Em Búzios, cada vez mais plural e diversa, o uso apressado desse instrumento diz menos sobre os alvos e mais sobre os que o assinam. Trinta anos depois da emancipação, a cidade amadurece. E talvez seja hora de aprender que, em uma democracia, há mais força no diálogo do que no repúdio.


