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Essa já era a terceira noite consecutiva que o Abel sonhava que o seu recentemente falecido irmão aparecia no seu quarto para observá-lo dormir placidamente.

O sonho repetia-se e o jeito que os fatos iam se sucedendo eram praticamente idênticos. No exato momento que ele delicadamente colocava a sua cabeça sobre o travesseiro e escondia-se embaixo dos brancos lençóis na solidão do seu apartamento com vista a um sempre barulhento Oceano Atlântico Sul, o via chegar silenciosamente, usando as mesmas vestimentas do seu próprio velório: uma camiseta polo branca, uma apertada calça jeans e tênis também brancos, com o cabelo arrumado a um lado e a barba cuidadosamente feita. Era então que ele dirigia-se a uma cadeira no canto do quarto, tirava as roupas usadas que ali foram colocadas e as botava sobre uma mesa pequena, para depois sentar-se e, apoiando os cotovelos nos joelhos, o olhava fixamente até ele cair no sono, quase do mesmo jeito que faziam quando crianças.

Só que essa vez foi levemente distinta. Vladimirlenin, era esse o nome do finado, em homenagem ao homônimo máximo ídolo da sua mãe, ainda que por um erro no cartório foi escrito como se fosse uma única palavra- aproximou-se à beira da cama e suavemente, mexeu o colchão para perceber que ninguém estivesse dormindo entre essas quatro paredes. Foi então que pronunciou claramente, com essa maravilhosa dicção que sempre o caracterizou em vida:

«Você é idiota, Abel? Você não está vendo que isso NÃO É UM SONHO? Já é a terceira noite que você me vê aqui e nem um simples ‘NOSSA SENHORA!’ você grita. Já estou achando que esse negócio de ser uma assombração não foi feito para mim».

Absorto, o Abel não conseguia acreditar no que o Vladimirlenin estava comentando. As oficinas da África e Oriente Médio eram melhores que as do nosso continente? Que doidera!

Esses sonhos estavam se tornando realmente cada vez mais loucos. Deveria parar de jantar tanto e tão tarde, pensou o Abel, bocejando e arrumando a cueca cheia de buracos que costumava usar para dormir.

«Para de coçar o saco e presta atenção quando eu falo pra você, rapaz! » gritou Vladimirlenin, enquanto dava a ele um rápido tapa no braço direito, onde dois dias atrás ele tinha tatuado o escudo do seu time de futebol, o que instantaneamente provocou nele uma aguda sensação que misturava dor e ardor na pele.

Foi nesse momento que notou a realidade. O seu irmão morto estava dizendo a verdade, o que aliás, o fez refletir sobre a frase anterior e se perguntar se realmente a palavra “morto” poderia ser aplicada em uma situação como aquela. Foi ali que começou a escutá-lo com atenção.

«Já sei no que você está pensando, mas é isso. Estou completamente morto. Quem teria pensado que almoçar enquanto você vai andando, poderia te levar a sofrer uma ‘morte por garfo na garganta’? Bom, também nunca teria imaginado estar aqui depois disso. O que tenho de explicar para você, irmão, é que tenho uns assuntos sem terminar aqui na terra. E vou precisar um pouco da tua ajuda. Que clichê, não é? »

Abrindo os olhos como se fossem duas moedas de ouro, o Abel perguntou o que é que trazia ele de regresso. Obviamente, se é que realmente tinha partido do plano terreno.

«O problema de morar na América Latina não são nem os políticos da direita, nem a intromissão das nações estrangeiras, Abelzinho. É a burocracia. E no céu chega a ser ainda pior. As oficinas do continente tem listas infindas de documentos que temos de apresentar e me falaram que se eu quisesse entrar em uma área VIP para passar o resto da eternidade tinha de conseguir uns papéis que tinha deixado em vida. Tentei ir às oficinas do céu em Caracas e às do Rio de Janeiro para ver se eu teria melhor sorte, só que não. As piores são as de Buenos Aires: as filas são infinitas, e literalmente você não consegue ver o fim delas. Porém, não são piores que as do Sudeste Asiático. Isso me deixa um pouco mais tranquilo, mas sei lá…»

Absorto, o Abel não conseguia acreditar no que o Vladimirlenin estava comentando. As oficinas da África e Oriente Médio eram melhores que as do nosso continente? Que doidera!

«Preciso que você traga para mim duas coisas: A minha certidão de batismo e o da minha apostasia. Eu não faço ideia onde que você os guardou. Tenho muitas coisas para te contar: Na verdade Deus é uma mulher, acredita que nós passamos a nossa vida inteira achando que fosse um senhor de barba usando camisola? Você sabia que tem o mesmo rosto que a Rihanna? Ainda não cheguei a conhecê-lo. Digo, não cheguei a conhecê-LA, mas falaram que é simpaticíssima. Bom, meu irmão, necessito que você arranje esses papéis, senão vou ter que passar o resto da eternidade sendo feliz assistindo filmes românticos e alguns de terror. Mas, na área VIP você tem acesso ilimitado a todas as formas de entretenimento, e se eu conseguir entrar, vou morar no mesmo bairro que o Paul McCartney, que aliás, morreu sim, e foi substituído».

Sem falar uma palavra, o Abel foi ouvindo e analisando todos os segredos celestiais que o seu falecido irmão ia detalhando. Tendo sido um grandíssimo fofoqueiro em vida, por que teria de mudar depois de ter morrido? Ele explicou que a apostasia era necessária para calcular o índice de honestidade no agir diário e o de batismo para saber o índice de pureza na alma, coisas que definitivamente seriam precisas em um bairro tão exclusivo. Deus simplesmente nunca se importou se as pessoas acreditavam ou não na sua existência, e era por isso que as apostasias eram desse jeito, úteis também.

O Abel levantou-se e, ainda calado, foi andando descalço até uma velha biblioteca de carvalho na sala de jantar. Da prateleira superior tirou uma pasta com vários papéis que o Vladimirlenin havia escondido estando vivo. Encontravam-se ali fotos de mulheres nuas e algumas cartas das suas antigas namoradas, alguns boletos já pagos e também provas da escola elementar. Finalmente, em baixo disso tudo, e cheio de poeira, achou os seus preciosos documentos.

«Aleluia! Que bom que você não jogou nada no lixo. É ótimo que você seja um acumulador, isso pode te dar alguns pontos extra quando você morrer, sabia? O céu é assim, é meio ilógico. Ainda há algumas regras que continuam a funcionar. Comer camarão por exemplo, tira vários pontos de você, mas ser homossexual e comer carne de porco não causam nada. O Parlamento de Santos e Anjos decidiu que não iriam discriminar essas coisas».

O irmão vivo sorriu. Foi maravilhoso vê-lo mais uma vez, alí disse pra ele que sentiria saudades e que, quando a sua hora chegasse, tomara que tenham sorte de morar em um bairro próximo, a final das contas, em vida haviam sido os melhores amigos que poderiam haver existido.

«Obrigado por tudo, Abelzinho. Deixa eu falar mais uma coisa, antes de eu ir embora,se você sentir muito a minha falta, não se suicide, isso vai deixar a sua pontuação pela metade,você pode acabar indo ao inferno, que na realidade é uma bairro da periferia. Não é isso que todo mundo fala no plano terreno, se bem que as melhores festas são lá,  sabia que o novo diabo é o Michael Jackson? Começou o mandato semana passada, depois de uma eleição pau a pau contra o partido da Amy Winehouse. Espero te ver logo!»

Depois de um abraço apertado, o Vladimirlenin simplesmente desvaneceu-e no ar. A morte trazia consigo alguns benefícios na ordem do teatral, e o falecido simplesmente adorava essas mises-en-scène.

Por Javier Ulla – Psicólogo, LGBT orgulhoso, professor de idiomas estrangeiros, viciado em chimarrão e cerveja, amante das línguas e dos thrillers psicológicos.


Saiba um pouco mais do autor 

Naseu em junho de 1989, em uma cidade do noroeste argentino chamada Santiago del Estero, ano que transformou a história do mundo por causa das Revoluções que derrubaram os Estados Comunistas do Bloco do Leste, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Cortina de Ferro na Europa.
Esse ano também nasceu Taylor Swift e segundo a astrologia chinesa foi o ano da serpente.
Muita coincidência para um ano só, o que só pode ter como resultado o nascimento de quem escreve hoje essas palavras.
Vinte e cinco anos depois mudou-se à região dos Lagos no Rio de Janeiro, Brasil, para viver experiências novas e largar a sua antiga vida no sertão argentino de peronismo ou neoliberalismo, de Pátria ou corporações.

https://prensadebabel.com.br/index.php/2018/04/02/o-homem-mais-feliz-sobre-a-face-da-terra/

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Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

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