Quando a notícia de a Princesa Isabel havia assinado uma lei extinguindo a Escravidão no Brasil, o país foi tomado por um sentimento de incredulidade. Todos sabiam que um dia, a Escravidão acabaria, mas, mesmo assim, quando esse dia chegou todos, senhores e escravos começaram a dar tratos à bola: afinal, o que será de agora em diante?
Muitos ex-escravos resolveram aproveitar a oportunidade e resolveram tentar a vida em outro lugar, bem distante e onde trabalhavam e nasceram. Isso explica porque uma cidade como o Rio de Janeiro, que na época da Abolição tinha somente 18% de sua população na condição de escravos, recebeu um número tão elevado de pessoas vindas de todas as cidades do Brasil, mas principalmente do interior da então Província do Rio de Janeiro.
Mas, nem todos botaram o pé na estrada. Na verdade, um número expressivo de ex-escravos decidiu ficar nas terras onde já trabalhavam, na condição de pequenos lavradores.
Nos Estados Unidos, quando a Guerra Civil terminou com a escravidão havia mais escravos do que no Brasil na época Abolição. Enquanto no Brasil, aproximadamente 1 milhão e meio de escravos foram libertados com a Lei Áurea, nos Estados o número de escravos libertos com o fim do conflito entre o Norte e o sul era três vezes maior, ultrapassando os 5 milhões. Os Estados Unidos eram o maior país escravista do mundo, quando terminou a Guerra de Secessão.
Lá também, muitos escravos viram na Abolição a oportunidade que tanto esperavam para colocar o pé na estrada e buscar um outro lugar para recomeçarem a vida.
Tal como no Brasil, muitos também decidiram ficar nos estados do Sul, aqueles que perderam a guerra, mas que decidiram inventar uma nova forma de viver em um mundo sem escravidão. Os negros que ficaram no Sul foram testemunhas da construção de uma sociedade que inventou a segregação racial de modo brutal, expresso na violência de organizações como a Ku Klux Klan e no código informal do Jim Crow.
Milhões de negros decidiram migrar do Sul, iniciando o maior processo migratório da história dos Estados Unidos. Foi este processo que criou as comunidades negras de Nova York, Chicago, Detroit e Los Angeles. A cultura americana foi marcada definitiva por causa desta grande migração, pois foi na esteira deste processo que expressões culturais como o Blues, o Jazz e o Rock surgiram.
Nesta semana, a premiação do Oscar conferiu a “Green Book”, o Oscar de melhor filme. A história conta um caso real, a existência de um guia de viagens exclusivo para negros na América do Pós Guerra.
Nesta época, cada vez mais negros decidiram fazer uma viagem, só que sem volta, ou seja, decidiram sair de suas cidades no interior do Sul dos Estados Unidos e decidiram morar em cidades como Chicago. A capital de Illinois, onde Barack e Michelle Obama construíram suas carreiras como líderes na política chegou a ter um milhão e duzentos mil habitantes classificados como “Negros”, segundo o Censo americano. Mas, pelas projeções em 2030, a cidade terá somente 630,000 negros, ou seja, a metade do número que já teve no final do século XX.
Bem, onde foram parar todos estes negros? O que está acontecendo nesse exato momento na América é algo que não aparece nas manchetes de jornal, muito menos nas mídias sociais, mas terá um impacto duradouro no futuro do país mais rico do mundo.
Alguns jornalistas americanos dizem que esta é a maior matéria de jornalismo investigativo da história do jornalismo americano que não está sendo contada. Trata-se do grande movimento de “retorno “ dos descendentes de imigrantes negros do Sul dos Estados Unidos voltando para a terra de seus pais ou avós.
Aqueles ex-escravos que saíram do Sul dos Estados Unidos para construírem novas vidas em cidades como Chicago e Nova York, formaram a base da classe trabalhadora americana, construíram do zero uma cultura musical inteira que hoje é a marca dos Estados Unidos em todo o mundo. Essas pessoas foram morar nos grandes conjuntos habitacionais de Chicago e Nova York ou Los Angeles. Eles tiveram seus filhos que em muitos casos ascenderam socialmente, dando uma nova feição ao mercado de trabalho e às relações raciais americanas. São estas pessoas que agora decidem trocar o lugar de origem pelos estados do Sul dos Estados Unidos.
Esta viagem de volta não é “The Green Book”, mas bem merecia um filme sobre ela também.
*Paulo Roberto Araújo é professor de História e suburbano convicto