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Pierre-Luc ficou atordoado. Estupefato, não conseguia acreditar nas palavras que ingressaram nos seus ouvidos, como se fossem facadas que entravam na carne e ralavam o osso.

«Você é um descuidado. Se você perdeu o seu arquivo é porque é um desleixado. É muito grave aquilo que falou. Você deve revisar um milhão de vezes antes de falar que alguém tocou nas tuas coisas», disse impunemente a coordenadora pedagógica do instituto onde ele ensinava francês de segunda-feira a sábado.

Naquele meio dia, como cada jornada de trabalho, depois de ter dado aulas desde o amanhecer até o seu horário do almoço, guardou o seu pendrive, o qual ele usava para ilustrar o vocabulário e adestrar cada aluno na complicada e temida gramática.

Porém, mais uma vez, estavam faltando coisas no seu armário pessoal. De lá dentro já pegaram comida, cadernos, canetas de quadro, tesouras, carregadores de celular e tinham esvaziado a garrafa de azeite que ali guardava. Mas aquele dia o que faltava era esse pequeno e precioso objeto. A semana seguinte seria a prova final de várias das suas turmas e precisava fazer uma revisão geral.

Pierre-Luc era tão rígido como professor quanto acessível e simpático, e cada minuto na sua aula era um manancial de conteúdo, o que fazia que cada estudante sob a sua autoridade voltasse a casa com mais conteúdo do que esperasse assimilar. Contudo, aquele dia não seria assim e teria que dar conta da sua capacidade com uma última lição que tinha sido planejada de maneira completamente diferente.

Dirigindo o seu olhar direto no relógio na sua mão esquerda, notou que faltavam só quinze minutos antes de entrar em sala, às quatorze horas daquela segunda-feira.

Fora do instituto o sol brilhava com força e era possível ver vários dos seus alunos entrando para tomar assento na sala de espera antes de ser chamados à sala.

«Lógico que eu revisei, Marianne. Revisei várias vezes, tirei tudo de dentro do armário e não está aqui. Deixei ele faz uma hora e agora não está mais. Todo mundo mete a mão ali dentro e usam tudo como se fosse o armário do povo. Não sei o que acham que são».

Um incômodo silêncio invadiu a sala de professores e ambos se olharam direito nos olhos.

«O que eu sei é que é muito grave isso que você acabou de falar» – disse ela quebrando o gelo.

«Você sabe bem que todos pegam as minhas coisas como se fossem de todos. Você sabe que todos botam a mão onde não corresponde».

Novamente, aquele maldito silêncio tomou o controle por outros infindos segundos, que não davam tréguas às duríssimas expressões dos dois.

«Eu não sei de nada. Era pra você ter mais cuidado» .

Pierre-Luc arregalou os olhos enquanto a sua mandíbula foi abrindo-se sutilmente até sua úvula ficar nítidamente visível.

Bruscamente, a sua respiração ficou agitada e um pingo de suor rolou pela sua testa cheia de veias inchadas, descendo pelo nariz e caindo nos seus lábios, onde seria retirada com a língua.

Apesar de que não tiveram a sorte de ser expulsos dos seus lábios, pela sua cabeça passaram inúmeros insultos para a pessoa da sua coordenadora, a sua mãe, sua avó, as suas tias e todas as gerações anteriores.

Escárnios que tocavam a vivência da sua sexualidade, que a comparavam com excremento e os mais variados desperdícios humanos, assim como outros que injuriavam o seu nível cognitivo e intelectual, a sua classe social, seu gênero e, mesmo não tendo notado, o seu grupo étnico.

Apertou os dentes, respirou fundo, e então finalmente se deixou vencer pelo ódio, deixando livre aquilo que estava preso dentro de si.

Quando o relógio marcava cinco para as duas da tarde, uma forte dor na sua barriga o obrigou a levar ambas mãos no seu abdômen, enquanto um retumbante grito ecoou nos ouvidos da sua única testemunha naquela maldita segunda-feira à tarde.

Ajoelhando-se, ante o assombrado olhar de Marianne, quem boquiaberta ficou sem outra reação que observá-lo cair no chão por trás da mesa, perdendo-o de vista no mesmo tempo que profundos sons guturais eram proferidos pela sua boca.

Andando uns passos na frente, claramente temerosa, pronunciou o nome dele, e levou as mãos na boca, segurando o alarido de horror ao ver uma imensa poça de sangue que simplesmente parecia não parar de crescer e manchava todo o chão recentemente varrido e encerado, enquanto o corpo de Pierre-Luc estava deitado, inerte e com os olhos perdidos e tão abertos como a sua boca, observando o vazio.

Um buraco enorme ocupava o lugar onde outrora ocupou a sua caixa torácica, aberta de lado a lado como se tivesse dado à luz pelo peitoral.

Surgindo por trás das cadeiras, um estranho animal, escuro como a noite, com aparência felina e banhado no mesmo sangue que sujava o chão, olhava atentamente para ela, provocando aquele pálido tom que agora colorava a sua pele.

As orelhas pontudas estavam voltadas para trás, aplastadas, e seu corpo maciço e musculoso ia inclinando-se para cima. Seus orifícios nasais se contraíram, automaticamente.

Imóvel e apavorada, Marianne não consegui tirar o olho daquela enorme fera que arqueava seu corpo sem retirar o seu olhar dela em momento nenhum.

Os compridos bigodes haviam se inclinado para a frente, no instante em que ela percebeu que cada um dos finos pêlos pretos completamente eriçados, desde o focinho até a ponta do rabo, soube que já não tinha mais nada a fazer que encomendar a sua alma a aquele deus ao que orava cada noite antes de dormir.

Fechou os olhos, esperando o pior. A fera na frente dela pulou e mordeu a sua garganta, cavando as suas garras e produzindo nela longos e fundos cortes nas costas e nos peitos.

Com as mandíbulas enterradas no seu pescoço, a fera a segurava do mesmo jeito que um amante na êxtase da paixão consegue, sacudindo desesperadamente a cabeça de lado a lado e derramando litros de sangue tão quente quanto o inferno mesmo, protagonizando ambos um orgasmo sangrento nunca visto antes na face da terra.

Finalmente morta, desabou no chão. A fera se deliciou, e dirigiu-se à sala de espera, enquanto um coro de crianças gritando horrorizadas se transformava na trilha sonora daquela segunda-feira à tarde.


Saiba um pouco mais do autor 

Naseu em junho de 1989, em uma cidade do noroeste argentino chamada Santiago del Estero, ano que transformou a história do mundo por causa das Revoluções que derrubaram os Estados Comunistas do Bloco do Leste, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução da Cortina de Ferro na Europa.
Esse ano também nasceu Taylor Swift e segundo a astrologia chinesa foi o ano da serpente.
Muita coincidência para um ano só, o que só pode ter como resultado o nascimento de quem escreve hoje essas palavras.
Vinte e cinco anos depois mudou-se à região dos Lagos no Rio de Janeiro, Brasil, para viver experiências novas e largar a sua antiga vida no sertão argentino de peronismo ou neoliberalismo, de Pátria ou corporações.
Leia outros contos de Javier

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Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

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