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Onde está o “Rosa”? Sobre Viagens, Mortes e Ressurreições

Era Lisboa, 2 de Setembro de 1830. A escuna “Rosa” deixou o Tejo com um capitão, um mestre e 31 tripulantes. Ia para a Costa da Guiné buscar uns 400 escravos que seriam despachados em Nassau, Bahamas.

Chegarem em Cacheu, na Guiné Bissau e ficaram por lá pelo menos 4 meses. Cacheu fica na foz de um rio, que é a porta de entrada do interior, de onde viriam os tais escravos. Recolheram o pessoal e partiram para o Caribe. Quando ganharam o mar aberto, um navio de guerra inglês acabou com a festa, prendeu o capitão e a tripulação, despachando-os para Serra Leoa.

Frase da letra de uma canção do Rappa sobre como é a realidade dos negros no Brasil, e no Rio de Janeiro,em especial

Parte dos mais de 300 escravos ficaram na África mesmo. Outra foi para Londres. O que foi feito deles, não se sabe. Essa estorinha só foi possível porque juntei os dados da viagem do “Rosa” na base de dados Slave Voyages, um banco de dados com as viagens de navios negreiros desde o século XVI, até 1860.

Por alguns anos, a base Slave Voyages foi restrita aos pesquisadores que diligentemente a construíram e alimentaram, desde o fim da década de 60, nos Estados Unidos. Na época, havia grande interesse da comunidade acadêmica, mas também da sociedade civil norte-americana, em saber para onde foram os africanos que desembarcaram nas Américas.  “Buscar as raízes”, como se dizia nos anos 70, tornou-se um jargão comum no movimento dos direitos civis americanos. Mas como resgatar essas “raízes”, se não havia a menor ideia do paradeiro dos africanos que saíram da África em direção à América?

Alguma coisa se sabia, o que já era um começo: a viagem nos navios negreiros era perigosa, mortífera e longa. Mais gente morria na viagem, a “passagem do meio” do que trabalhando de sol a sol nas lavouras do Tenessee,  ou nos cafezais de Vassouras, no Rio de Janeiro.

Imagem usada por movimentos de resistência negra nas comunidades do Rio

Um africano que embarcava em um navio negreiro sabia no seu íntimo, que não mais voltaria. Na prática, ao entrar no porão do navio, ele já se considerava morto. Quem ficou na sua terra, e não teve o infortúnio de vir com ele, assim pensava também. Aqueles que iam para ‘o outro lado”, não eram mais considerados “vivos”.

Por isso, a experiência da escravidão, bem como a de ser negro no Brasil, também esteve intimamente ligada à Morte. Os viajantes estrangeiros quando aqui chegavam, percebiam isso também. Para eles, era ao mesmo tempo estranho, mórbido e mesmo assustador como a vida cotidiana dos escravos brasileiros estava cercada de referências constantes à Morte.

Ao chegar no Brasil portanto, essas pessoas tinham de literalmente reinventar-se, desde o novo nome que recebiam às novas relações que eles iriam criar no Brasil.

Quando a base de dados Slave Voyages foi construída, havia a esperança de que os pequenos cacos de informação das viagens de milhões de escravos em navios negreiros pudessem oferecer algumas pistas, algo como se pudéssemos seguir as “pegadas” destes ancestrais. Existem informações bem interessantes, quando coletamos dados sobre o destino das viagens para o Brasil.

A primeira delas é que em um período que foi do século XVI, a meados do século XIX, de cada 10 escravos embarcados na África, pelo menos 4 desembarcavam em algum porto brasileiro, de preferência no Rio de Janeiro.

Cartaz colado em postes no centro do Rio

Por mais de 100 anos, o Rio de Janeiro não era apenas a sede da colônia portuguesa nas Américas, mas o maior porto escravista na história do Ocidente, desde o Império Romano. Quando manipulamos as informações desta base é quase natural nos perguntarmos para onde foram estas pessoas.

Navios como a escuna “Rosa”, que zarparam do Tejo em 1830, poderiam tomar o rumo do Brasil, e depois de semanas navegando no Atlântico, avistar a cadeia de montanhas que faz parte da paisagem natural de Cabo Frio. Para quem tinha experiência com navegação, este marco natural era garantia que a embarcação estava próxima do Rio de Janeiro e portanto, da costa brasileira.

Pois era neste momento que as embarcações da marinha inglesa aproveitavam para abordarem estas embarcações, tomando de assalto a “carga” de escravos, prendendo a tripulação e daí, levando-a para ser julgada em um tribunal especial em Serra Leoa, na África.

Mas, como bem sabemos em histórias sobre o tráfico, sempre existe aquele aventureiro que escapa das malhas da Lei, e no caso, não eram poucos os que conseguiam isso. As praias da Região dos Lagos, que hoje servem de cartão postal e turbinam a indústria do turismo local, naquela época eram esconderijos de muitos traficantes que entravam neste negócio, que podia ser muito lucrativo, mas  era também cheio de fortes emoções.

Se uma esquadra inglesa abordasse uma embarcação carregada de escravos, muito dificilmente seu proprietário iria reaver o capital investido na empreitada. Era coisa que demandava tempo, dinheiro e paciência, já que o processo corria em instâncias internacionais, em Serra Leoa e em Londres.

As praias da Região dos Lagos foram se tornando um lugar preferido para esses traficantes aportarem e de lá, enviarem os escravos para o seu lugar de destino. Vale lembrar que uma vez desembarcados, estes escravos eram distribuídos em fazendas, como as que existiam na Região dos Lagos, mas em grande parte eram mandados para as fazendas do Vale do Paraíba.

E como faziam isso? Simples, caminhando, da mesma maneira que caminharam de suas aldeias, no interior de Angola ou Moçambique, até chegarem aos barracões, onde ficavam semanas a fio à espera de serem enviados para a América. Sempre fico me perguntando o que acontecia com estas pessoas durante este trajeto, que modificações ocorriam nesta “viagem”, que era ao mesmo tempo física e psicológica.

Raríssimos são os relatos deixados por escravos sobre tal metamorfose. Alguns deles foram transformados em verdadeiros libelos pela campanha abolicionista iniciada na Inglaterra, a partir de 1790. Um testemunho que ficou famoso foi o publicado por Oloudah Equiano, o escravo nigeriano que depois de trabalhar nas plantações de açúcar do Caribe, foi para Londres e lá se transformou em um dos grandes símbolos da campanha abolicionista que terminou com a promulgação da lei que em 1807, acabou com este comércio para os navios de bandeira inglesa.

Não é à toa que os observadores estrangeiros perceberam esta conexão entre a condição da escravidão e a profusão de referências à Morte, mas também à ressurreição, ou melhor a um “novo nascimento”. Isso moldou a psicologia coletiva da sociedade brasileira, de uma maneira que eu mal consigo ter uma ideia mais clara da dimensão deste fenômeno.

Nesta semana, em que a Morte mais uma vez, ganha as manchetes de jornais, penso que devemos ver neste pedaço da história, uma lição sobre a Morte, viagens e ressurreições.

 

 

Noticiário das Caravelas

Coluna da Angela

Angela é uma jornalista prestigiada, com passagem por vários veículos de comunicação da região, entre eles a marca da imprensa buziana, o eterno e irreverente jornal “Peru Molhado”.

Coluna Clinton Davison

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