O ano era 1983, o Rio de Janeiro enfrentava até aquela época, a sua pior crise. Com a economia nacional em severa recessão, o desemprego e a violência estavam em todas as conversas. A ditadura militar já estava nos seus estertores e colhia os frutos de uma série escolhas econômicas equivocadas. O governo do então Presidente João Batista Figueiredo estava às voltas com uma economia que no ano anterior, havia encolhido e com uma inflação que escapara ao controle, ultrapassando os 250% ao ano.
Como isso era enfrentado pelo cidadão comum do Brasil e do Rio de Janeiro, em particular? Na época, a inflação e o desemprego no Rio de Janeiro repercutiram no aumento de saques a supermercados e crises de desabastecimento. Não passava uma semana sem que os jornais não trouxessem alguma notícia, ou sobre algum supermercado saqueado, ou de algum produto que literalmente desaparecera das prateleiras do varejo. Poderia ser arroz, carne, óleo de soja ou mesmo sabão em pó.
O desabastecimento era o efeito mais perverso de um processo de degeneração econômica. Temendo que um produto fosse sumir do mercado ou ter seu preço alterado, por conta da inflação, os consumidores corriam aos supermercados para fazerem estoques deste produto. O resultado? Prateleiras vazias. Hoje, passados mais de 30 anos e diversos planos econômicos, a ideia de que as prateleiras dos supermercados podem ficar vazias, só é concebível em outros países, como é o que está acontecendo na Venezuela.
Comparando a época em que vivemos com aquela de 30 anos atrás, havia sim motivos mais do que suficientes para que a população do Rio de Janeiro fosse às ruas. E, de certa maneira, ela foi às ruas, na forma de uma série de ondas de saques e depredações aos mesmos supermercados que aumentavam os preços a cada semana, ou que tinham as sua prateleiras vazias por conta do desabastecimento. Acho apropriado utilizar aqui a categoria que o historiador Edward Palmer Thompson denominou de “economia moral da multidão”. Ao analisar as revoltas populares na Inglaterra do século XVIII decorrentes dos aumentos dos preços do pão, Thompson lançou luz sobre um aspecto importante na dinâmica dos protestos populares. Ele percebeu que aqueles protestos visavam em primeiro lugar, corrigir uma distorção da economia, mas não modificar radicalmente a sua estrutura. Ao irem para as ruas, os camponeses ingleses protestavam por um “preço justo” para o pão, deixando bem claro que o problema não era necessariamente “o mercado”, mas as distorções que poderiam ocorrer nele.
Tenho certeza que nenhum dos manifestantes cariocas que participou daquela onda de saques aos supermercados cariocas, não leu uma linha sequer de Thompson, mas sabiam muito bem do que ele estava descrevendo. A inflação descontrolada acabou criando também entre esta população, uma “economia moral”, cuja onda de saques era a manifestação mais visível, mas não a única.
Nessa época em que a ditadura militar dava os seus últimos suspiros, os órgãos que faziam parte da “comunidade de segurança e informação” estavam atentos também a estas manifestações. Entenda-se por “comunidade de segurança e informação” a rede de instituições de segurança estaduais e federais criada para coletar, analisar e disseminar todas as informações sobre as atividades que eventualmente fossem consideradas uma ameaça aos governos militares. Esta rede era encabeçada pelo Serviço Nacional de Informações, ligado ao Gabinete Civil da Presidência da República, controlado por ninguém menos que o General Golbery do Couto e Silva.
Mais abaixo na hierarquia estavam os órgãos de Inteligência das Forças Armadas, os serviços de polícia política das Secretarias de Segurança Pública dos Estados, os conhecidos “DOPS”. Eram estes “DOPS” que ficavam na ponta da cadeia de informação. Com o trabalho dos investigadores de rua, muito mais treinados em lidar com crimes comuns do que delitos de caráter político, os arquivos da comunidade de segurança e informação eram abastecidos com o que estava acontecendo nas ruas do país. Fazendo uma comparação, era como se eles tivessem uma espécie de sismógrafo, aquele aparelho que mede a movimentação das placas tectônicas da Terra procurando prever onde e quando ocorrerá o próximo terremoto.
Naquele ano de 1983, esta mesma rede de segurança de informação começou a coletar uma atividade nas favelas do Rio de Janeiro. Tratava-se de uma nova organização que se auto intitulava “Falange Vermelha”. As informações indicavam que a organização fora criada na década de 70, quando presos comuns dividiram espaço com presos políticos no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro.
No Arquivo Público do Rio de Janeiro, com seu enorme acervo sobre as atividades da polícia política no Estado, existe alguma documentação sobre as origens desta organização. Os dossiês criados sobre as suas atividades foram alguns dos últimos trabalhos de investigação realizados pelo DOPS do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, o governo Leonel Brizola, em conformidade com o projeto de redemocratizar as instituições do Estado Rio de Janeiro, extinguiu o DOPS. Muitos dos seus antigos membros foram remanejados para outras instituições, mergulhando no anonimato, e lá permanecendo até os dias de hoje.
Mas, naquele distante ano de 1983, o “sismógrafo” desta comunidade de segurança e informação identificou ali uma atividade que anos mais tarde, produziria o terremoto que hoje sacode o Rio de Janeiro. Aqueles documentos depositados na tranquilidade do Arquivo Público do Rio de janeiro, são uma evidência de que o crescimento de facções criminosas no Rio de Janeiro já era do conhecimento dos órgãos de segurança.
Ao examinar aqueles papéis, a conclusão mais lógica fica na pergunta: como isso chegou a este o ponto? Eu, com meu computador arrisco uma resposta: parte da resposta, alíás boa parte dela pode ser encontrada investigando o nosso passado recente.