Uma pessoa como eu, pode ser considerada “antiga”, pois nasceu e cresceu no século passado, ou seja, no século XX. Naquela época, “fazer o Ensino Médio” era tido como a maneira mais segura de um jovem chegar ao mercado de trabalho. A geração de meus pais viveu uma realidade bem diferente da minha. Para eles, a entrada no mercado de trabalho deu-se em uma idade mais precoce do que a minha, ou seja, eles começaram a trabalhar com uma idade menor do que quando tive meu primeiro emprego. O que aconteceu nesse meio tempo, o que mudou no mercado de trabalho entre o período que meus pais começaram a trabalhar, na primeira metade do século XX, e o que aconteceu comigo, quando fiz a mesma transição, mas no fim do mesmo século?
No espaço de uma geração, mais ou menos entre 20 e 30 anos de tempo transcorrido, a escolaridade aumentou entre os mais jovens brasileiros. Meus pais não estudaram para entrar no mercado de trabalho. Aliás, essa era a regra para a esmagadora maioria dos jovens no início do século XX. “Estudar” era uma atividade reservada a poucos jovens, completar o Ensino Médio então, era algo mais raro ainda. Em geral, o “estudo”, lá no começo do século XX, para a grande maioria dos jovens no Brasil significava saber não mais do que ler e escrever, e ter rudimentos das 4 operações matemáticas, e só. Não era pedido, e nem necessário mais do que isso, já que a grande maioria das tarefas desempenhadas pelos jovens no início do século XX eram muito simples, que não exigiam grande qualificação profissional.
Em pouco mais de 20, 30 anos, essa realidade mudou completamente: o mercado de trabalho de jovens da minha idade, na segunda metade do século XX, era muito diferente. Surgiram ocupações que simplesmente eram impensáveis na época de meus pais. Computadores, por exemplo. A maior parte dos jovens de minha geração, quando terminou o Ensino Médio, foi trabalhar em um ambiente, onde existia pelo menos um computador no local de trabalho.
Compreender as relações entre o mercado de trabalho, os jovens e a Educação exige, a meu ver, um tipo de perspectiva que os historiadores chamam de “longa duração”. Isso quer dizer que se quisermos compreender realmente como essas variáveis estão relacionadas, devemos prestar atenção não apenas no que está acontecendo “agora”, mas também analisarmos este fenômeno em uma escala de tempo mais ampla, de pelo menos 40 a 50 anos. Para muitos, pode parecer paradoxal dizer que para entendermos as razões dos jovens hoje serem as maiores vítimas do desemprego no Brasil, temos de recuar 20, 30 anos, ou talvez até mais.
Explico: a relação entre acesso ao mercado de trabalho, escolaridade e emprego depende muitas vezes, de decisões que foram tomadas há muitos anos atrás. Um exemplo: no século XX, a “Engenharia” era uma profissão que trabalhava com “Coisas”, ou seja, uma atividade cuja finalidade principal era, e ainda é, projetar, construir e colocar coisas para funcionar, das quais nós literalmente víamos, tocávamos, e até mesmo sentíamos seu cheiro, coisas tangíveis, enfim.
Muitos jovens ainda hoje, quando saem do Ensino Médio e dizem pretender ser “Engenheiros”, guardam ainda essa representação tradicional na cabeça. Para a maioria deles, ser um “Engenheiro” significa, ainda hoje, “fazer coisas que as pessoas possam tocar”, como uma casa, ou um automóvel, por exemplo. Mas hoje vivemos em uma realidade na qual muitas coisas das quais dependemos, não são necessariamente “tangíveis”. Por exemplo, quando fazemos uma busca no Google, tudo o que ele nos devolve são “palavras”. Mesmo assim, o Google não deixa de ser uma “máquina”, porém com uma função e um significado muito diferentes daquele que tínhamos de uma “máquina”, até o século XX. Até aquela época, uma “máquina” era um artefato físico projetado e construído para realizar um conjunto de tarefas. Mas então, vieram os computadores, e mais precisamente um inglês de nome Alan Turing, que mudou completamente o conceito de “máquina”.
A partir de Alan Turing, uma “máquina” passou a ser entendida como um conjunto de instruções que realizam uma tarefa, mas essa propriedade, essa capacidade de “realizar tarefas” não implica que essa “máquina” deva possuir uma materialidade física, um programa de computador, um “software”, se realiza as mesmas tarefas da antiga máquina física, pode ser considerado igualmente, uma “máquina”. Ora, se essa “máquina”, que não é mais tangível realiza as mesmas tarefas que os equipamentos físicos de antes, e são muitíssimo mais baratas e eficientes do que as antigas máquinas físicas, nada mais natural que os empregadores decidam substituir as antigas máquinas, pelas novas. O que escrevi acima é uma tentativa de resumir ao máximo, o que considero o núcleo do processo de automação no mundo do trabalho, a maior revolução silenciosa que ocorreu no Capitalismo em todo o mundo, e não apenas no Brasil.
Isso significa que tarefas que antes eram realizadas por máquinas físicas podem ser “programadas” em um computador, e realizadas por meio de “softwares” criados especificamente para este fim. Essa realidade está plenamente integrada à nossa vida cotidiana nos dias de hoje.
Como os jovens reagem a estas mudanças? Para começo de conversa, é preciso repensar certos sensos comuns acerca da relação dos jovens com a Tecnologia. O primeiro e o mais difundido, é a crença de que os Jovens e a Tecnologia, “nasceram um para o outro”. Já virou coisa corriqueira ouvirmos declarações do tipo: “os jovens são muito mais interessados em Tecnologia, porque afinal, eles estão sempre conectados”. O equívoco deste tipo de raciocínio é a confundir a familiaridade dos jovens como “usuários da Tecnologia”, com o seu real domínio da mesma tecnologia.
Saber usar redes sociais, como o Facebook e o Twitter, não significa necessariamente “dominar” absolutamente nada, ao contrário, em geral, o jovem ‘especializa-se” na condição de “usuário”, destas mesmas plataformas. Esse hábito de ‘usuário” é frequentemente confundido com “domínio”. Entendo por “dominar” uma tecnologia, não apenas a habilidade no seu manuseio, mas principalmente a capacidade de produzir alterações nesta mesma tecnologia, de modo que ela possa ser aprimorada, desenvolvida. Jovens, em geral, dividem-se em “Usuários”, a esmagadora maioria deles, e “desenvolvedores”, uma pequeníssima parcela, altamente educada. Esse fosso educacional explica, e muito, a desigualdade de oportunidades entre os jovens no Brasil, e no mundo.
E o que a “nossa” Escola tem a ver com isso? Sou de opinião, que o ensino atual, ainda não se desvencilhou da concepção tradicional de trabalho que me era familiar, lá no fim do século XX. Quando entrei no Ensino Médio, “estudar” significava dominar certas habilidades para poder “usar” as máquinas e os equipamentos que faziam parte do mundo do trabalho da época.
De certa maneira, toda a concepção de “Ensino Técnico” no Brasil ainda é impregnada com esta concepção, a de que é preciso “ se educar “, para poder “usar” e operar” a Tecnologia. O problema é que atualmente, em 2019, estamos entrando em uma fase na qual a tendência é que o mundo do trabalho seja cada vez mais dominado por trabalhadores educados para “desenvolverem” coisas, e não apenas “operá-las”. Sim, ainda existirá por longo tempo, pessoas que estarão em uma caixa de banco, em um supermercado, dirigindo um ônibus, entre outras coisas. Porém, cada vez mais, veremos trabalhadores cuja formação técnica será dirigida a “desenvolver” coisas, como programas de computador e equipamentos. A Indústria 4.0 e a Programação apresentam-se como fortes tendências nesse sentido.
Nossas escolas porém, estão funcionando e ensinando pessoas como se elas estivessem ainda no século XX. O resultado, a meu ver, é que muitos jovens, de alguma maneira, percebem este descompasso, e acabam por literalmente “desistirem” da Escola. Escrevi todos os parágrafos acima para chegar ao ponto mais crítico de minha argumentação: se quisermos compreender realmente as causas, os determinantes do desemprego entre os jovens, temos de ir mais fundo. Não basta somente atribuirmos as razões deste desemprego a fatores conjunturais, eles explicam apenas uma parte do fenômeno, e na minha opinião não explicam nem mesmo a parte mais importante dele.
Tentei apelar para a minha experiência pessoal para mostrar como, em um espaço de poucas gerações, o mercado de trabalho no Brasil mudou profundamente. Essa mudança ainda está ocorrendo, e em uma velocidade até maior do que na minha época em que comecei a trabalhar.
Está sendo construído um fosso, uma divisão tanto no ensino, quanto no mundo do trabalho: a divisão que separa aqueles serão educados para “executar” tarefas e aqueles que serão educados para “desenvolver”. Isso está acontecendo bem diante de nós, todos os dias.
*Paulo Roberto Araújo é professor de História e suburbano convicto