Meio da tarde no Rio de Janeiro. Como águia em posição de vôo e com a serenidade das grandes líderes a presidenta deposta Dilma Rousseff lançou durante alguns minutos os olhos sobre a baía de Guanabara. Buscou identificar os elementos da geografia, a forma como o sol nasce e se põe naquela região e a ocupação do território. Delineados suavemente por lápis preto seus olhos trazem a expressão forte de quem já havia experimentado sofrimentos profundos que marcam a alma e conduzem sua forma de estar no mundo. Sem ressentimentos. Com firmeza. Olhos que miram o futuro sem temer o passado.
Tive a oportunidade de acompanhar Dilma Rousseff em entrevista para a imprensa internacional no Rio de Janeiro na última sexta-feira. Durante quase 3 horas, junto com um jornalista e sua assessora pessoal, pude ouvir Dilma, sem intermediários ou edições, encontro este entremeado por água, café e sorrisos da primeira mulher presidenta do Brasil. A perspectiva em primeira pessoa sobre o seu afastamento da presidência da república assim como a sua visão sobre a conjuntura e a estrutura do Brasil atestam inegavelmente a sua sobriedade, erudição e capacidade de articulação admirável, em contraposição à misoginia e violência, elementos marcantes na construção da sua imagem por alguns meios de comunicação nacional. Inegavelmente a atuação da imprensa brasileira contribuiu decisivamente para a sua deposição da presidência e, ato contínuo, promoveu o bloqueio da sua manifestação nos principais meios de comunicação nacionais.
A narrativa majoritária da imprensa nacional sobre a imagem de Dilma Rousseff como alguém incapaz para o cargo que outrora ocupou é incompatível com Dilma Rousseff ao vivo, nos primeiros minutos de conversa, sem filtros ou edições. Altiva, com a certeza e dignidade ímpares daquelas legitimadas pela soberania popular, segura das suas convicções sobre um projeto de políticas públicas e justiça social no Brasil, objetiva e sem titubear, com humor e elegância, Dilma dissertou desde as especificidades do poder legislativo nacional a partir do Segundo Império até a lamentável indiferença internacional ao Brasil no pós-golpe jurídico, parlamentar e midiático de 2016.
Impressionou-me a capacidade de Dilma em articular política e literatura, em particular quando fez menção à Kafka para exemplificar o processo de lawfare pelo qual vem passando o ex-presidente Lula. Seus posicionamentos evidenciaram a dificuldade em efetivar politicas sociais pela pressão do capital financeiro internacional, elemento decisivo na desestruturação da democracia no Brasil que culminou com a sua deposição do mais alto cargo da república.
Ao falar sobre a formação da esquerda na Itália, em especial no que se transformou o partido comunista italiano, Dilma ofereceu uma verdadeira masterclass de ciência política.
Fui privilegiado, por obra e arte do destino, em ter a oportunidade de testemunhar a história em primeira pessoa, in loco, e perceber a magnitude do poder midiático e a necessidade de regulamentação dos meios de comunicação para garantir a liberdade de expressão, contra a narrativa única, patriarcal e fascista.
No encontro com Dilma pude atestar a dignidade do cargo da presidência da república que se estrutura no poder e legitimidade conferidos ao governante pelo voto popular.
Do café com Dilma ficaram três certezas: o patriarcado é elemento estrutural da sociedade brasileira, e promove a LGBTfobia e a misoginia, que traduzem-se desde a violência e assassinato de pessoas até o afastamento de primeira mulher presidenta da república no Brasil. O cargo de presidente da república não é para covardes. Muito menos para golpistas.