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Cidades

Trump, o FBI, os russos – e o Brasil

 

Sei que estamos no meio de uma bagunça sem precedentes aqui no Brasil, mas vocês têm alguma idéia de o quão maluca é a situação nos EUA também?  Essa rixa entre Trump e o FBI, por exemplo.

 

Como americano nato, sinto-me lisonjeado que, depois de consagrar tanto tempo às conversas conspiratórias entre o gângster presidente da maior e mais populosa nação sul-americana e o gângster dono da JBS, o Jornal Nacional ainda achou, semana passada, um pouco de tempo não somente para as previsões do tempo da Maju – aliás, bastante melancólicas nesses dias; também achou um ou dois minutos para as mais recentes extravagâncias do gângster presidente da populosa democracia norte-americana.

 

Vocês estão acompanhando essas maluquices lá nos EUA? Estão pelo menos lendo as manchetes? Ou vocês estão tão estarrecidos, indignados e revoltados pelas revelações dos conluios em altas horas da noite aqui no Brasil – em horas em que pessoas decentes já estão indo para a cama – que não têm nem indignação nem revolta nem tempo de sobra para o martírio desse povo norte-americano que sempre tinha todas as vantagens (e, pelo ponto de vista brasileiro, talvez mereça o castigo a que agora está sendo administrado)?

 

Um filme sobre o FBI, de 1959, na sua versão brasileira
Um filme sobre o FBI, de 1959, na sua versão brasileira

Não quero repetir informações que já saíram nas páginas internacionais da grande imprensa e no noticiário televiso aqui no Brasil, mas esse é um risco que não vou correr se esclarecer um pouco o que é o FBI. Primeiro, essas três letras. O FBI é o Federal Bureau of Investigation, ou seja, a Agência Federal de Investigação. No organograma do governo dos EUA, pertence ao Departamento da Justiça, mas desfruta de considerável autonomia em sua perseguição de crimes sob as leis da união. Em tempos recentes, o FBI investigava Hillary por seu uso de um servidor de email particular quando Secretária de Estado durante a administração Obama. A ideia era de que, devido à sua arrogância e imprudência, grandes segredos de estado talvez fossem comprometidos. Os democratas – o partido dela, a centro-esquerda americana – reclamaram de uma caça às bruxas.

 

Em tempos recentes, o FBI investigava Trump e seus comparsas e colaboradores por suas conexões com o governo e com magnatas russos. Trump também reclamou de uma caça às bruxas. Reclamou de uma caça às bruxas e demitiu o diretor da agência, James Comey. Um showboat, Trump alegou. Um grandstander. Um nut job. Adoro essas palavras. Para as duas primeiras, a imprensa brasileira usa, geralmente, exibicionista; para a terceira, maluco. Mas as palavras em inglês são muito mais gostosas e reveladoras. Tudo o que é errado e doente na mente de Trump pode ser lido nessas três palavras.

 

De qualquer forma, Trump nem sequer conseguiu apagar a investigação. Houve fumaça demais. O Attorney General, o equivalente do ministro da justiça no Brasil, ele mesmo comprometido por suas relações com os russos, tinha de se recusar do assunto, mas o seu adjunto nomeou um ex-diretor do FBI para retomar a investigação independentemente do FBI.

 

junior digitais
Um kit de impressões digitais para a criançada.

Eu agradeço a Victor Viana e Sandro Peixoto, os donos desta revista virtual, pela liberdade que me dão para vituperar e de falar besteira a respeito de Trump semana após semana. Mas, graças a minha idade agora mais ou menos venerável, sou uma espécie de viajante no tempo. Tenho uma memória vívida de coisas que pessoas nascidas nas décadas de 70 e 80 e 90 nunca souberam. E, graças a essa memória, eu não somente abrigo dúvidas a respeito do palhaço Trump; abrigo dúvidas também a respeito do próprio FBI.

 

 

 

HooverJohnson
J. Edgar Hoover e o Presidente Lyndon Johnson

Entre sua fundação em 1935 e 1972, o FBI foi governado por um homem só, o famoso e também famigerado J. Edgar Hoover, e, se ele parou de governar a agencia em 1972, é só porque ele morreu em 1972. É pior do que isso. Hoover também tinha sido o diretor da agência de investigação que precedeu o FBI. Funcionou como o tira #1 americano por quase um meio século.

 

Na década de 1930, Hoover, em pouco tempo, criou e consolidou um mito do FBI ao longo de duas vertentes. Primeiro, Hoover aplicou todas as ciências do combate ao crime. O FBI ficou famoso por seu vasto banco de impressões digitais e por seus laboratórios criminais equipados extravagantemente para a análise de tudo desde um lenço ensanguentado a um fio de cabelo. Segundo, os agentes de Hoover, armas em punho, perseguiram e prenderam ou mataram alguns dos criminosos mais coloridos da época –John Dillinger, “Machine Gun” (Metralhadora) Kelly, “Baby Face” (Cara de Nenê) Nelson, “Ma” (Mãezinha) Barker.

 

Hoover tinha um visual nada meigo ou sedutor. Como se sofresse constantemente de dores nas costas ou de hemorróidas. Mas, ao invés de tentar caracterizá-lo, fisicamente, em palavras, vamos postar uma foto. Hoover tinha, não obstante, um gênio demoníaco para a promoção de sua agência e igualmente para a promoção de si mesmo.

 

Mark, à esquerda, e seu irmão Robert, agora professor de sociologia emérito, numa fila de identificação policial em Washington, 1953
Mark, à esquerda, e seu irmão Robert, agora professor de sociologia emérito, numa fila de identificação policial em Washington, 1953

 

Porque o diretor sempre cooperava com os grandes estúdios de Hollywood, saiu, ao longo das décadas, uma enxurrada de filmes que glamorizava em partes iguais o trabalho intelectual frio dos laboratórios em Washington e a teatricalidade dos tiroteios em garagens, armazéns e bueiros em lugares como Chicago e Kansas City. Confesso que, durante a minha própria infância, sintonizava às vezes, com a expectativa de muita emoção, um programa de rádio chamado The FBI in Peace and War, mas – pena? – nasci um pouco tarde demais para ter memória de um programa de rádio, Junior G-Men, que tentou alistar a criançada no combate ao crime e sem dúvida incentivou um ou dois garotos demasiado zelosos para ligar para a agência do FBI mais próxima e avisar que tinham visto os seus próprios pais em comportamentos suspeitos.

 

G-Men, a propósito, como no nome do programa Junior G-Men, era um dos apelidos dos agentes do FBI. Um G-Man era um Government Man. Mas Hoover e os seus colaboradores encheram o ar com todo tipo de lema e bordão pitoresco. “Inimigo público número um.” “O crime não compensa” (crime doesn’t pay, no inglês original). “O FBI sempre pega seu homem.” E houve, claro, essa lista dos “10 principais procurados” – com fotos e desenhos de criminosos desesperados nas paredes de todos os correios. Na minha infância, nunca entrei num correio sem dar uma olhada, caso, cruzando com um desses grandes malfeitores, eu pudesse ligar para o FBI e denunciar.

 

Quando comecei a escrever o parágrafo anterior, passou por minha cabeça que a divisa “Truth, justice and the American way” também fosse uma dessas invenções geniais de Hoover. (Truth = verdade; justice = justiça. “The American way” é um pouco mais difícil. O jeito americano? A versão americana do jeito brasileiro? Não. O jeito brasileiro é um tipo de esperteza. O “American way” é algo mais como o modo de vida americano ou o sistema americano ou a expressão, em nosso comportamento, dos valores americanos. Nada de cinismo.) Mas pesquisei. De fato, “truth, justice and the American way” não era uma fórmula de Hoover. Era uma divisa dos gibis de Superman. Mas a confusão não é vergonhosa. Superman e o FBI – os dois mitos tinham muito em comum.

 

Depois da Grande Depressão da década de 1930, Hoover especializou na caça aos comunistas e aos miscigenistas e, oportunamente, até acossou o movimento para direitos civis dos negros, e logo logo a agência se transformou num outro tipo de mito. Tornou-se uma espécie de polícia secreta nos moldes da Gestapo na Alemanha e do KGB na União Soviética. Hoover não tinha muito interesse na perseguição do Ku Klux Klan, não tinha muito interesse na perseguição da máfia, mão tinha muito interesse na investigação de crimes financeiros de colarinho branco. Mas ficou meio obcecado com Martin Luther King, um líder (na verdade, bastante conservador) do movimento para os direitos civis dos negros e, desde 1964, um titular do Nobel da Paz. Hoover o espiou. Numa entrevista coletiva de imprensa nesse mesmo ano de 1964, Hoover o chamou de “o mais notório mentiroso” no país. E alguns dias depois da coletiva, King recebeu um pacote com uma gravação de encontros – grampeados – entre ele e namoradas e uma letra anônima avisando que não havia saída para ele senão o suicídio. Nunca foi provado que Hoover era o provocador, mas quem mais teria tido essa gravação? Hoover até mantinha um arquivo sobre o físico Einstein, que lecionava na Universidade Princeton. 1.800 páginas, quando os arquivos foram abertos.

 

Vários dos seis presidentes sob os quais Hoover serviu queriam demiti-lo. Truman, o presidente que assumiu depois da morte de Franklin Roosevelt, até escreveu, numa nota para si mesmo, “Não queremos nem Gestapo nem polícia secreta. O FBI tem tendências nesse sentido. Eles estão mexendo em escândalos das vidas sexuais das pessoas e em chantagem pura. J. Edgar Hoover daria os olhos da cara para assumir, e todos os Representatives” – os deputados de lá – “e os senadores estão com medo dele.”

 

E por que não foi demitido? Porque os próprios presidentes estavam com medo dele. Hoover tinha espionado e grampeado todo mundo. Sabia das indiscrições de Eisenhower, sabia das indiscrições de Kennedy. Sabia de tudo.

 

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Hoover e o amigo Tolson

Difícil deixar a questão de Hoover sem algumas palavras sobre sua vida pessoal. Nunca houve uma Senhora Hoover. O nosso J. Edgar almoçava diariamente, jantava diariamente, frequentava o hipódromo e boates em Nova York e tirava férias com Clyde Tolson, o seu segundo. Os dois não moravam juntos. Hoover morava com sua mãe. Mas, depois da morte de Hoover, seu espólio foi para Tolson, e ele chegou a ocupar a casa que tinha sido do seu companheiro. Homosexuais – nessa época antes da invenção do gay heroico e, com certeza, assumido? As biografias fazem menção de todo tipo de boato – que Hoover pintava as unhas dos pés, que Hoover era travesti. Alguns dizem que a máfia tinha espionado Hoover do mesmo jeito que Hoover espionava todos os outros, o chantageou, e é por isso que Hoover deixou o crime organizado prosperar enquanto perseguia os supostos comunistas e o movimento para direitos civis com afinco. A propósito, Hoover se proclamava apolítico. Ideia interessante – como se um conjunto de valores não fosse, em si, equivalente a uma política explícita.

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ObamaBoné
Obama prova um boné com insígnia do FBI – e parece não gostar

Vamos cortar para o presente ou pelo menos para a era pós-Hoover. Depois da morte de Hoover, a direção do FBI foi, em grande medida, racionalizada e significativamente despolitizada. Doravante, por exemplo, o diretor serviria por um termo de 10 anos e, como os termos dos diretores do Fed, o banco central americano, o termo do diretor do FBI não coincidiria diretamente com o termo de um presidente.  Com certeza, um presidente nomearia cada novo diretor do FBI, mas muitos presidentes teriam de conviver com um diretor nomeado por um predecessor. A idéia, obviamente, era de proteger o FBI de pressões políticas na medida do possível.

 

Estou ficando cada dia mais velho – mas ainda estou perplexo com um grande número de questões absolutamente básicas. Sou de nacionalidade americana. Moro no Brasil. Numa conversa em altas horas da madrugada, diria que todo mundo deveria ter a liberdade de ir e vir como quiser e de morar onde quiser, fodam-se as fronteiras nacionais. Sob a luz do dia seguinte, reconheceria o direito de cada país de controlar as suas fronteiras e de determinar quem entra e por quanto tempo e sob quais restrições, e quem não. Em geral, sou, obviamente, a favor da liberalidade. Me beneficiei, e continuo beneficiando todo dia, da liberalidade do Brasil. Mas exatamente em que medida os países deveriam abrir as comportas, não faço ideia.

 

Mesma perplexidade a respeito dessas polícias nossas – o FBI nos EUA, a Polícia Federal aqui no Brasil. Não sou espião. Não gosto de mexer nas gavetas de outrem. Não tenho o temperamento. Prefiro que ninguém mexa nas minhas gavetas. Acho que seria muito melhor se pudéssemos habitar um mundo sem grampos e sem gravações clandestinas.

 

Glenn Greenwald
Glenn Greenwald

Glenn Greenwald é muito mais radical do que eu. Glenn Greenwald, como vocês sabem, é o jornalista e advogado constitucional americano que ajudou o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança americana, Edward Snowden, a divulgar as informações que tinha sobre os excessos das agências americanas que fazem bisbilhotice eletrônica. Greenwald mora no Rio. Tem um jornal on-line chamado The Intercept e escreve, entre outras coisas, sobre os excessos do FBI agora – tantos anos depois da morte de Hoover. Algumas dos seus artigos saem em inglês e em português. Veja um exemplo na página neste artigo do The Intercpt.

 

Mas se concedermos que o nosso mundo ainda não evoluísse ao ponto onde podemos nos dar ao luxo de dispensar as investigações judiciais e policiais? Uma coisa é certa. O poder de investigar é um poder temeroso. Ainda mais temeroso quando os investigadores têm instrumentos poderosos como grampos e câmeras infravermelhas e – não vamos esquecer – o direito de conceder uma delação premiada. Esse poder deve ser usado com juízo e muita cautela. Os investigadores identificam e capturam malfeitores; também destroem as vidas de pessoas inocentes. Às vezes, deliberadamente ou não, seguem vieses tendenciosos. Peço perdão se essas minhas ambivalências não resolvam problema nenhum. É complicado, porra.

 

Por Mark Zussman 

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